O episódio num cinema de
shopping center, envolvendo o assassinato de três pessoas e o ferimento
de várias por um jovem em tratamento psiquiátrico despertaram na
população e nos profissionais de saúde mental a associação entre
violência e doença mental.
Em estudos histórico-antropológicos, Monahan1
conclui que "a crença de que as doenças mentais estão associadas à
violência é historicamente constante e culturalmente universal".
Essa
percepção pública tem conseqüências na prática social (estigma) contra
indivíduos portadores de doenças mentais. A estigmatização do doente
mental é o maior obstáculo para sua reintegração social.
Portanto, antes
de aceitá-la, devemos analisar criticamente, primeiro, se a associação
existe de fato, e, em seguida, qual é a magnitude de seu efeito nos
crimes de violência em geral.
Em um estudo epidemiológico na Alemanha, Haefner e Boeker2
encontraram que não havia um excesso de doentes mentais dentre os
criminosos violentos da década 1955-1964 quando comparados com a
população em geral. Encontraram também que a idade média do doente
mental criminoso por ocasião do crime era 10 anos maior do que a do
criminoso da população em geral, sugerindo que a doença mental, ao
contrário, retarda a expressão do ato de violência.
O
grupo de pesquisa liderado por Steadman (1998), New York, não encontrou
diferença na prevalência da violência em doentes mentais sem abuso de
substâncias, comparados com a população geral. O risco de violência em
indivíduos da população geral com abuso de álcool ou drogas foi duas
vezes maior do que em pacientes esquizofrênicos sem abuso. Esse risco é
potencializado quando álcool ou drogas coexistem em indivíduo portador
de transtorno mental, segundo Swanson e colaboradores3. O
maior risco para expressão de violência ocorre na combinação de abuso de
álcool/drogas com transtorno de personalidade anti-social.
Esses
achados sugerem que a doença mental em senso estrito contribui muito
pouco para a ocorrência de crimes de violência.
A magnitude dessa
contribuição pode ser avaliada pelo estudo de maior impacto sobre doença
mental e crime, realizado na Dinamarca e publicado em 1996 por Hodgins e
colaboradores4. Os autores identificaram todos os indivíduos
nascidos entre 1944 e 1947 (360.000 pessoas). Quando esses indivíduos
tinham 43 anos de idade, identificou-se, através dos registros centrais,
quais tinham um registro de internações em hospitais psiquiátricos e
quais tinham sido condenados por infrações do código penal. Comparou-se
então a freqüência e o tipo de crimes cometidos entre os indivíduos com e
sem internação psiquiátrica, assim como entre os diferentes
diagnósticos psiquiátricos. Encontrou-se uma maior freqüência de crimes
de violência em pacientes que haviam sido hospitalizados do que em
indivíduos sem internações psiquiátricas. Os resultados para homens, no
período de 1978-1990, estão na tabela abaixo:
Assim, na Dinamarca,
indivíduos que foram internados em hospitais psiquiátricos por doença
mental têm um risco 4,5 vezes maior de praticar um crime de violência
que indivíduos sem internação.
Os riscos para outros transtornos
aumentam até 8,5 vezes em pessoas com abuso de drogas. Fica claro que
álcool e drogas — também em nosso meio um problema de saúde pública —
contribuem mais para a violência que as doenças mentais.
Monahan e Steadman5
mostraram que pacientes com um comportamento agressivo terão uma chance
maior de serem hospitalizados do que pacientes não agressivos com
sintomas semelhantes.
Portanto, o critério de seleção para o estudo na Dinamarca, baseado em registros de internação hospitalar, já selecionou, a priori,
uma amostra de pacientes mais agressivos do que a média dos doentes
mentais, resultando em uma estatística inflacionada do número de crimes
de violência. Mesmo com essas reservas metodológicas, os resultados
desse estudo falam contra o estereótipo existente, pois mostram que a
grande maioria de doentes mentais na Dinamarca (no mínimo 93%,
seguramente mais) não é violenta.
Esses
dados não podem ser imediatamente importados para o Brasil. É plausível
supor que os índices de crimes de violência em cidades como São Paulo
ou Rio de Janeiro sejam maiores que na Dinamarca.
Como se trata aqui de
criminalidade intencional, portanto consciente, é possível que ela
esteja aumentada apenas na população sem doença mental, diminuindo,
portanto, o excesso relativo em doentes. Mas isso é uma hipótese que
necessita de verificação experimental.
O fato é
que a associação entre doença mental e violência, ao menos na
intensidade em que tem sido noticiada, não tem base real. O indivíduo
psicótico pode se tornar agressivo se estiver alcoolizado. Aliás, o
não-psicótico também.
Wagner F. Gattaz
Professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Referências
1.
Monahan J. 'A terror to their neighbors': beliefs about mental disorder
and violence in historical and cultural perspective. Bull Am Acad
Psychiatry Law 1992;20:191-5.
2. Häfner H, Böker W. Crimes of violence by mentally abnormal offenders. Cambridge: Cambridge University Press; 1982.
3.
Hodgins S, Mednick SA, Brennan PA, Schulsinger F, Engberg M. Mental
disorder and crime. Evidence from a Danish birth cohort. Arch Gen
Psychiatry 1996;53:489-96.
4. Swanson J,
Estroff S, Swartz M, Borum R, Lachicotte W, Zimmer C et al. Violence and
severe mental disorder in clinical and community populations: the
effects of psychotic symptoms, comorbidityt, and lack of treatment.
Psychiatry 1997;60:1-22.
5. Monahan J,
Steadman HJ. Crime and mental disorder: an epidemiological approach. In:
Tonry M, Morrias N, editors. Crime and Justice: Na annual review of
Research. Chicago: The University of Chicago Press; 1983. p. 145-89.
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