Translate

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

História do tratamento a doentes mentais

 
A camisa é grande demais. Folgada, suja e amarrotada. Sob ela, a mulher magra em demasia fala para ninguém enquanto vai atravessando por entre a multidão na principal avenida comercial de Belém, a Presidente Vargas. Ninguém entre os que passam apressados estanca passos para ouvi-la. Mesmo se o fizesse, pouco entenderia. Mesmo se compreendesse, pouco se importaria. Alguns riem. Outros se assustam.
A mulher magra despe-se das poucas vestes que ainda a cobrem. O corpo nu arranca olhares curiosos, assustados e interrogativos. A pele escura, de um quase bronze, apresenta marcas e cicatrizes, obtidas não se sabe como. Os cabelos espessos são coçados insistentemente. Sinais de piolhos. A mulher atravessa a rua, não se importando com os carros e some num beco qualquer. O dia segue.
Cenas como essa são comuns em Belém. Misturados a mendigos, dezenas - ou mais-de doentes mentais circulam pela cidade. Perambulam sem destino ou indo em direção a casas de abrigo onde recebem porções regradas de alimentos. Na rua Diogo Moia, um desses andarilhos escolheu a varanda de uma casa abandonada como moradia. Falam sozinhos, gesticulam para nada e para ninguém. Ou para todos ao mesmo tempo. Mas para eles, Belém tem dado pouca atenção.
Isso incomoda o médico Dorvalino Braga. Ele talvez seja o nome mais lembrado quando se fala em humanização do tratamento de doentes mentais na história recente do Estado. Dorvalino Braga foi um dos fundadores da Fundação Pestalozzi, da Escola de Enfermagem, hoje ligada à Universidade do Estado do Pará, e também responsável por mudar métodos e concepções a respeito de como tratar pacientes mentais no período em que dirigiu o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, ainda hoje referência histórica, às vezes para o bem e às vezes para o mal, quando o assunto é doença mental no Estado. A partir de determinado momento a história de ambos, profissional e instituição, se confundem.
 
Mas o Hospital Juliano Moreira vem de antes. Tem origem na criação do Hospício de Alienados, criado em 1892, no que era chamado Marco da Légua, em Belém. Em 1937 muda de nome, passando a ser chamado de Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira. Mais que uma troca de denominação, há uma tentativa de se incorporar às inovações no tratamento psiquiátrico que começam a ocorrer no País, muitas delas introduzidas por Juliano Moreira.
Mesmo com boas intenções, a lógica é a da exclusão social. Se os hansenianos isolados eram por conta de certa repulsa visual e receio de contaminação, os ‘doidos’ eram afastados do convívio social por medo puro. Ao abordar o histórico do hospital, os pesquisadores Alice Bela e Éderson Pinho dizem que a instituição está inserida na série de reformas de Belém no início do período republicano. A ideia embutida era que manicômios, hospitais e presídios deveriam ser construídos distantes da área central para que se retirassem os ‘elementos não condizentes com o espaço urbano, pautado na higienização, organização e embelezamento’.
“Eu ainda vi o ‘tronco’ no Juliano Moreira”, lembra Dorvalino Braga. O tronco e a camisa de força ainda eram instrumentos utilizados no ‘tratamento’ dos enfermos. O tronco remetia à época da escravidão, quando os negros eram açoitados como punição por alguma ‘falta’.
Braga diz que isso não era à toa. Na história brasileira os primeiros navios que traziam escravos ou condenados em Portugal estavam repletos também de doentes mentais. “Eram mão de obra gratuita para os donos de terra à época”, conta.
Ao incorporar o nome Hospital Psiquiátrico, o Juliano Moreira adotou uma nova forma de olhar a loucura. Ela podia ser tratável.
A medicina apresentava novos medicamentos para isso. Era uma revolução, sim, mas não queria dizer que a humanização fazia parte desses procedimentos.
 



 
 
‘Revolta dos Loucos’: reação a doentes amarrados e trancafiados

Humanização foi o que Dorvalino Braga introduziu ao assumir a direção do hospital Juliano Moreira no final dos anos 50. Havia passado por uma temporada de um ano no Rio de Janeiro como bolsista, se especializando no tratamento psiquiátrico. Viu as novas técnicas, percebeu que os procedimentos estavam mudando. A Europa discutia novas formas de tratamento aos doentes mentais. A desumanização dos portadores era criticada e adotavam-se novos olhares sobre a loucura.
“Vou implantar isso em Belém”, disse Braga a si mesmo. Teve de enfrentar resistências. Era comum que os doentes mentais chegassem do interior do Estado algemados ou amarrados. Braga aboliu a prática. Assim como passou a impedir que os doentes fossem trancafiados em celas solitárias. “Eles eram esquecidos lá. Dava menos trabalho a quem cuidava deles”, lembra.
O que Dorvalino Braga não sabia, embora não tardasse a perceber, é que havia muitos interesses a respeito dos cuidados com os doentes mentais. É como se eles fossem, por exemplo, propriedades de uma irmandade de freiras, que recebiam recursos para manter a organização do hospital. O médico bateu de frente com elas.
Dorvalino Braga ficou à frente do hospital em três períodos diferentes. Não estava à frente da instituição, por exemplo, em 1961, quando houve a chamada ‘Revolta dos Loucos’. O diretor era Eliseu Rodrigues. No dia 30 de novembro, liderados por ‘personalidades psicopáticas da Aeronáutica e do Exército’, os ‘loucos’ do Juliano Moreira promoveram uma rebelião, contida à custo pelas forças militares.
 Os pacientes agrediam a garrafadas quem ousasse chegar perto. O chefe de segurança pública do Estado, Evandro do Carmo, irmão do governador Aurélio do Carmo, foi uma das vítimas. Foi atingido por um pedaço de vidro e perdeu a visão de um dos olhos. “Foi uma reação aos maus-tratos”, garante Braga.
Em 1964, Jarbas Passarinho, um dos mentores do golpe militar de 64, assumiu o governo do Estado. Dorvalino Braga era contrário aos militares no poder, mas foi chamado por Passarinho para assumir novamente a direção do hospital. Com carta branca. Começou a efetivar as mudanças pretendidas. Um dos incentivos veio do próprio governador.
Em outubro de 1964, Passarinho visitou a instituição e ficou horrorizado com o que viu. As cenas eram medievais. “Mesmo com a formação militar, me contive para não vomitar”, disse.
Braga implantou práticas como atividades manuais artesanais e incentivou a arte entre os muros da instituição. Em 1967 o grupo de boi-bumbá formado por doentes do Juliano Moreira se apresentou no Bosque Rodrigues Alves.
Era uma surpresa à população de Belém. Braga promovia saídas, como idas a sítios com igarapés. Houve um ano em que levou os pacientes a assistir à passagem de Nossa Senhora de Nazaré durante o Círio.
 
 
Quando paredes vieram abaixo

Simbólico e histórico foi o dia em que o diretor simplesmente rompeu com os grilhões que separavam doentes mentais da sociedade. Arrancou as grades do hospital. Em plena ditadura militar, com adversários do regime sendo encarcerados e torturados, Braga fez o caminho oposto. Libertou quem estava preso.
O médico acompanhava os ventos de mudança no tratamento de doentes mentais. O sistema hospitalar ia sendo substituído por um novo método, o ambulatorial. O ‘encarceramento’ de doentes já não era visto com bons olhos. Na Europa, principalmente na Itália, surgiam os procedimentos do tipo ‘open doors’- portas abertas.
Retirar as grades do Juliano Moreira custou caro a Braga. O jornal Folha do Norte não perdoou e desandou a criticar o procedimento. Agastado, Jarbas Passarinho chamou Dorvalino e pediu explicações. Depois instruiu o médico a esclarecer à imprensa o que havia feito.
Na história antiga se diz que Nero, imperador louco de Roma incendiou a cidade. Roma pegava fogo e Nero tocava uma lira, assistindo deliciado ao espetáculo. Em 1982 o hospital Juliano Moreira ardeu em chamas. Parte da estrutura ficou comprometida. Dois anos depois o então prefeito Almir Gabriel fez com que o prédio, imponente, viesse abaixo.
Dorvalino Braga não perdoa essa atitude. “A desativação era normal porque fazia parte da mudança de visão de atendimento. Mas derrubar o prédio foi absurdo. Perdemos um lugar que poderia servir de museu ou coisa parecida. Foi um crime”, diz.

Remanescentes do hospital Juliano Moreira ainda sobrevivem no Centro Integrado de Assistência Psiquiátrica do Pará (Ciaspa), em Ananindeua. No hospital de Clinicas Gaspar Vianna existe uma ala para doentes mentais. Muitos são deixados lá durante crises por parentes, que ‘esquecem’ de ir buscá-los depois. Na Penitenciária de Americano, o Conselho Estadual de Saúde constatou que 200 internados há mais de 20 anos no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado, ainda aguardam laudos psiquiátricos para serem julgados.
São pontas soltas de uma história onde os protagonistas raramente têm voz. As paredes do Juliano Moreira poderiam contar parte dela. Mas as paredes não existem mais. E a história fica incompleta.
(Diário do Pará)

Nenhum comentário:

Postar um comentário