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domingo, 26 de junho de 2016

'Deficit de natureza' provoca problemas físicos e mentais em crianças, alerta especialista





Saem as brincadeiras no quintal, entram os apartamentos. Saem as praças e parques, entram os prédios. Saem os jogos na rua, entram os tablets e videogames.
Basta um olhar rápido para perceber que nas grandes e médias cidades o contato das crianças com a natureza, em geral, vem diminuindo.
E para o americano Richard Louv, autor de A Última Criança na Natureza, essa constatação em nada tem a ver com um saudosismo barato. Mas sim com os impactos negativos causados pelo o que ele chama de Transtorno de Deficit de Natureza.
Em visita a São Paulo para o lançamento de seu livro, Louv contou à BBC Brasil que ele começou a se interessar pelo tema no início dos anos 90, quando fazia pesquisas para seu livro Childhood's Future ("O Futuro da Infância", em tradução livre).
"Entrevistei mais de 3 mil pais e professores. Queria saber deles sobre como o cenário da infância estava mudando. E uma constante nos depoimentos foram pais reclamando de que não conseguiam tirar seus filhos de casa. Mesmo se morassem perto de áreas verdes ", disse.
"Na época, não haviam estudos sobre a aflição desses pais. Somente há menos de 10 anos surgiram as primeiras pesquisas sobre isso - e todas apontam para a mesma direção: a falta de contato das crianças com a natureza causa problemas físicos, como a obesidade, e mentais, como depressão, hiperatividade e deficit de atenção."
Louv, no entanto, vai além do cenário triste que pinta para as crianças dos dias atuais: ele também aponta medidas simples que pais, educadores, médicos e o poder público podem adotar para evitar o "deficit de natureza" até mesmo em grandes metrópoles. Confira os principais trechos da conversa:
BBC Brasil: Ainda há esperança para as crianças que vivem em cidades como São Paulo ou outras do estilo "selva de pedra"?
Richard Louv: (Risos). Sim, é claro que há esperança! Vi experiências muito interessantes em cidades na China e também em Atlanta, Chicago e em outras metrópoles americanas que podem ser comparadas com as brasileiras.
São escolas e associações que estão usando hortinhas, caminhadas em bosques e outras soluções simples para combater uma série de novos problemas que atingem muitas das crianças de hoje, por estarem tão afastadas da natureza.
BBC Brasil: Quais exatamente são esses novos problemas? São físicos ou mentais?
Richard: Os dois. Na parte física temos, por exemplo, a obesidade infantil, que hoje é epidemia em vários países mundo afora, inclusive, até onde eu sei no Brasil. (47% das crianças brasileiras têm com excesso de peso ou são obesas).
As crianças hoje passam menos horas ao ar livre e, consequentemente, mais tempo confinado em casa, vendo TV ou jogando videogame. Essa é uma das grandes causas da obesidade infantil. Meninos e meninas que ficam na frente de telinhas são menos ativos do que os que correm no parque, sobem em árvores...

BBC Brasil: E os transtornos psicológicos?
Richard: São muitos e são novos. Porque até a poucos anos atrás, era raro os pediatras atenderem crianças bem novas com sintomas de depressão. Também posso citar transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH), além de problemas cognitivos.
BBC Brasil: Como a natureza pode amenizar esses problemas?
Richard: Hoje, há muitos estudos mostrando que contato com a natureza - ainda que pequeno e por pouco tempo - podem reduzir os sintomas desses distúrbios.
Uma pesquisa de um grupo na Universidade de Chicago que estuda distúrbios de atenção entre crianças comprovou que meninos e meninas de 5 anos tiveram uma melhora significativa com caminhadas curtas em parques.
Pesquisadores da Universidade de Essex também mostraram impactos psicológicos mensuráveis em adultos depois de apenas cinco minutos andando entre árvores. Porque adultos, obviamente, também se beneficiam do contato com a natureza.
BBC Brasil: Você acha que conviver com a natureza é mais eficiente do que receitar remédios?

Richard: Veja, não estou dizendo que remédios como a Ritalina (usado para o tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, por exemplo) são ruins. Eles podem ser muito úteis para alguns casos.
Mas quando se têm escolas nos EUA em que 30% dos meninos tomam Ritalina, sabemos que algo não está certo. E os pediatras sabem disso. [O Brasil é o segundo maior consumidor do medicamento no mundo, com cerca de 2 milhões de caixas vendidas em 2010 - um aumento de 775% na última década, segundo a Anvisa.]
BBC Brasil: Sabem mesmo?
Richard: Acredito que muitos estão passando a se dar conta disso. E vejo cada vez mais profissionais começando a prescrever "brincar no parque". Prescrever mesmo, por escrito.
Em algumas partes dos EUA, por exemplo, associações de médicos começaram a usar dados com mapeamento das áreas verdes de suas cidades. Assim, dizem para os pais "tem um boques a duas quadras da sua casa, portanto não há desculpas para levar seu filho lá duas vezes por semana."
BBC Brasil: E o que exatamente acontece com essas crianças que são taxadas, corretamente ou não, de hiperativas quando elas passam mais tempo em áreas verdes.
Richard: Essa mudança costuma ser visível e rápida. Vou dar um bom exemplo. Recebo muitos comentários de professores que passaram a incluir mais passeios ao ar livre em suas turmas.
E, juro, perdi a conta de quantos professores me falaram exatamente a mesma coisa, com praticamente as mesmas palavras: "Richard, é impressionante. Meu aluno que é encrenqueiro na classe se transforma no líder quando estamos no parque." E o que estamos fazendo com essas crianças? Dando Ritalina.

BBC Brasil: Isso também mostra como o papel da escola é importante, não?
Richard: Com certeza. Eu diria inclusive que em grandes cidades, as escolas devem liderar o caminho de resgate do convívio das crianças com a natureza, já que as áreas verdes são poucas e a vida dos pais é corrida.
E há estudos mostrando que uma educação baseada no meio ambiente melhora o aprendizado não somente em áreas ligadas à ciências da terra, por exemplo, mas também em idiomas, matemática, história.
BBC Brasil: Mas como isso acontece?
Richard: Há muitos exemplos. São alunos aprendendo a somar ou dividir na beira de lagos. São escolas que exploram as áreas verdes não só em suas dependências mas também no bairro.
Há dados impressionantes mostrando como alunos de escolas baseadas no meio ambiente se saem melhor em testes tradicionais e também desenvolvem melhor a capacidade de ter um pensamento crítico, de solucionar problemas, de tomar decisões, entre outras características cognitivas.
BBC Brasil: E esses impactos positivos se dão sempre que a criança tem mais contato com a natureza, seja na escola ou não?
Richard: Exato. Pegue os exemplos dos parquinhos. Há dois tipos: os com brinquedos estruturados (escorregador, balanço, etc) e os chamados "playground de aventuras", em que em vez dos pisos de cimentos, temos terra, areia, grama; e não tem brinquedos prontos, e sim tocos de madeiras, morros e afins.
Pesquisas mostraram que crianças brincando nesse playground natural tinha uma propensão muito maior de inventar seus próprios jogos, de convidar outras crianças para a brincadeira, inclusive crianças de outras idades e outros gêneros, e de brincar de uma maneira mais cooperativa.
É isso que a natureza proporciona para as crianças.

BBC Brasil: Você cita muita crianças pequenas. Para uma mais velha, com 10 ou 11 anos por exemplo, é tarde demais para reconquistar esse convívio com o ambiente natural?
Richard: De jeito nenhum. Nunca é tarde demais. É claro que o ideal seria começar isso desde de bebê até os 3 anos. Mas o nosso cérebro tem o que se chama de plasticidade. E graças a ela abrem-se janelas para mudar o caminhos neurológicos que usamos para aprender ou perceber coisas novas em qualquer idade.
BBC Brasil: A poucas quadras daqui, há uma área (na Rua Augusta, centro de São Paulo) que virou alvo de disputa e que pode tanto virar um grande empreendimento imobiliário como um parque municipal. Certamente há disputas assim em todas as grandes cidades do mundo. Como o sr. se posiciona diante dessas situações?
Richard: É preciso ter uma visão pragmática. Por isso eu diria que o prefeito precisa colocar na ponta do lápis. Quanto a cidade gasta com saúde pública, com problemas como síndromes respiratórias, sedentarismo e saúde mental? Uma área verde no meio da cidade pode ajudar nisso.
Outro ponto: já está mais que provado que quando há um parque natural em uma determinada área, todo o entorno é valorizado, elevando o valor de mercado das propriedades ao redor. Isso também precisa entrar na conta. Aliás, a gestão municipal pode fazer muita diferença.

BBC Brasil: Por quê?
Richard: Eu queria lançar um desafio para o prefeito de São Paulo, como eu fiz na China. A cidade tem metas de ser uma cidade rica em áreas verdes? Isso pode entrar no marketing da cidade, para atrair grandes empresas, por exemplo.
Quais as metas de São Paulo ou de outras cidades no Brasil para ter mais parques, áreas de caminhadas, playground naturais, trilhas?
BBC Brasil: O sr. acha que isso hoje não é encarado como prioridade?
Richard: Bem longe disso. Um parque é encarado como uma coisa a mais para se ter, algo extra, um mimo. Enquanto pensarmos assim, nada vai mudar.
Porque a verdade é que uma área verde não é algo legal para se ter, é algo do qual todos precisam. É parte da nossa humanidade ter contato com a natureza, é parte dos direitos humanos básicos, como muitos órgãos internacionais já reconheceram. Por isso não pode ser negado pelas autoridades.

BBC Brasil: Além das autoridades e das escolas, qual o papel dos pais nessa retomada de contato das crianças com a natureza?
Richard: Como em tudo, os pais precisam ser exemplos. Precisam também usufruir da natureza - mesmo porque isso é benéfico para todas as idades. Precisam proporcionar passeios ao ar livre para as crianças, mostrar a importância desse contato...
BBC Brasil: Mas será que os pais que vivem dias corridos nas cidades dão conta disso também?
Richard: É importante é deixar claro que não é preciso ir acampar toda a semana, fazer trilhas na mata todo dia. O convívio com a natureza se dá também em atos simples, compatíveis com o dia a dia corrido das famílias atuais.
É ter uma hortinha em casa ou até na varanda do apartamento, é aproveitar áreas ao ar livre como quadras esportivas, quando não houver um super parque perto de casa. E até mesmo ler "Tom Sawyer" ou outros livros que despertem o encantamento das crianças com a natureza. 
FONTE: http://www.bbc.com/portuguese/geral-36592620

domingo, 5 de junho de 2016


O segredo da saúde mental e corporal está em não se lamentar pelo passado, não se preocupar com o futuro, nem se adiantar aos problemas, mas viver sabia e seriamente o presente.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Os micróbios de seu estômago afetam sua saúde mental

 Estudos recentes mostram a relação entre a diversidade de bactérias que vivem no intestino humano e doenças como a depressão e a ansiedade

 

Até pouco menos de uma década atrás, mudar o comportamento de uma pessoa com um transplante de fezes pareceria uma loucura. E não é algo que ocorrerá amanhã, mas as pesquisas com animais sugerem que talvez não seja uma ideia tão descabida. O que é averiguado nos laboratórios sobre a influência das bactérias que vivem em nosso intestino indica que elas não desempenham somente tarefas fundamentais para a saúde de nosso estômago. Influem também no estado do cérebro. 
Essas bactérias já foram transplantadas experimentalmente em humanos para combater infecções intestinais e da mesma forma, através da dieta e alimentos probióticos, que incluem microrganismos, serviriam para tratar doenças psiquiátricas e neurológicas.
Várias experiências com animais, principalmente ratos de laboratório criados em condições muito controladas, mostraram que os microrganismos do intestino podem afetar seu comportamento e modificar o equilíbrio químico de seu cérebro. Foi comprovado, por exemplo, que quando são introduzidas fezes de humanos com depressão em ratos estes desenvolvem sintomas próprios dessa doença. Em nossa espécie, também foram observados vínculos entre doenças gastrointestinais e patologias psiquiátricas como o autismo, a ansiedade e a depressão.
Transplantar fezes de pessoas depressivas a ratos induz a doença nos animais
“Já foram realizados estudos em humanos nos quais se compara a microbiota de pessoas sãs com a de outras que têm determinada doença e foi visto que modificando o ecossistema intestinal e suas funções é possível reduzir os estados de ansiedade”, explica Yolanda Sanz, pesquisadora do CSIC e coordenadora do projeto europeu MyNewGut, iniciativa financiada com 9 milhões de euros (35,6 milhões de reais) pela União Europeia para o estudo das bactérias intestinais. Mas acrescenta que “não existem evidências de causa e efeito em doenças mais graves”.
Sanz menciona também o interesse de algo que quase todo mundo já experimentou, a relação entre estados emocionais alterados e o mal-estar intestinal. “Em pessoas com alterações gastrointestinais, como síndrome de intestino irritável, foram observados problemas como a ansiedade e até mesmo depressão”, diz Sanz. “Nesses pacientes com esses transtornos mentais, foi observado que metade tinha problemas no sistema digestivo”, continua.
Agora, afirma a cientista do CSIC, resta o desafio de compreender o que é causa e o que é efeito nas relações entre problemas intestinais e mentais. Uma das formas de consegui-lo consistirá em realizar intervenções nos pacientes, “através de alimentos e bactérias prebióticas e probióticas” que modifiquem os equilíbrios entre micróbios que marcam a diferença entre a doença e a saúde. 
Sanz reconhece, entretanto, que o conhecimento ainda é escasso para se pensar em intervir com sucesso no ecossistema microbiano: “Existem algumas publicações que mostram que alguns probióticos podem reduzir a ansiedade, mas são estudos pequenos que em sua maioria não foram reproduzidos”. “É cedo para podermos fazer recomendações generalizadas, porque a complexidade do ecossistema intestinal é muito alta e é simplista pensar que com somente uma bactéria vamos solucionar o problema. Precisaremos pensar em modificar o ecossistema com intervenções mais integrais”, conclui.
Alguns probióticos conseguiram reduzir a ansiedade, mas em experimentos não replicados
Pesquisadores de todo o mundo começam a identificar os mecanismos através dos quais as bactérias do intestino, mediante a produção de hormônios e as moléculas que geram ao se alimentarem, modificam a química de nosso cérebro. Mas por enquanto o conhecimento sobre a influência do microbioma veio mais através do estudo de correlações do que pela análise dos processos concretos que as produzem. Uma série de estudos publicada recentemente na revista Science mostrou que uma diversidade bacteriana maior no intestino estava relacionada com uma saúde melhor. 
Além disso, vinculou essa diversidade ao consumo de iogurte e café, e indicou alguns fármacos como os ansiolíticos e os antibióticos e comer demais como culpados na queda na variedade microbiana.
A complexidade do problema pode ser entendida através dos números sobre a flora intestinal. Cada pessoa tem em seu estômago mais de um quilo de microrganismos, a maioria bactérias, de 1.200 espécies diferentes. Não será fácil manipular essa engrenagem para ajustá-la às nossas necessidades sem produzir efeitos indesejados.
“Estamos diante de um campo promissor, mas ainda incipiente”, diz Vicent Balanzá, pesquisador de Centro de Pesquisa Biomédica em Rede de Saúde Mental na Universidade de Valência. “A maior parte dos estudos é feita com ratos e temos o problema de replicá-los em humanos, e os estudos em humanos são transversais, de modo que temos problemas para identificar a causalidade”, prossegue. “Outra pergunta que ainda está no ar é qual é composição que consideramos normal e saudável da microbiota humana”, acrescenta.
Cada pessoa tem em seu estômago mais de um quilo de microrganismos de 1.200 espécies diferentes
Já existem ensaios clínicos com probióticos para tratar a depressão que melhoram os sintomas, mas são resultados que precisam ser confirmados. Além desses produtos que incluem micróbios benéficos, Balanzá destaca as possibilidades da dieta para reparar a microbiota humana danificada associada à doença mental. 
“Temos dados científicos de que uma boa dieta, como a mediterrânea, aumenta a diversidade da microbiota intestinal e tem efeitos anti-inflamatórios”, diz. O psiquiatra da UV afirma que essas intervenções “são consideradas junto com psicofármacos e outros tratamentos”.
Dada a heterogeneidade dos transtornos psiquiátricos, que são definidos por sintomas que podem ter bases fisiológicas diversas, não é possível realizar um tratamento único. Balanzá indica que será preciso distinguir condições particulares dentro de doenças que têm o mesmo nome. No caso da depressão, por exemplo, o pesquisador explica que “graças aos estudos de Michael Maes, sabemos que um terço dos pacientes com depressão apresenta a síndrome de intestino permeável”.
 “Não encontramos essa síndrome em todas as pessoas com depressão, de modo que as intervenções com a intenção de modular a microbiota intestinal não seriam úteis a todos os pacientes, seria preciso identificar aqueles que podem se beneficiar das intervenções”, afirma.
O estudo do microbioma pode ser um caminho para compreender as conexões entre o estado de ânimo e a saúde física que seriam produto de processos comuns. A inflamação é um nexo comum que une a diabetes, doenças autoimunes e o câncer e poderia ajudar a explicar o fato de aparecerem com certa frequência com algumas doenças mentais como a depressão associadas a outras inflamatórias como a síndrome do intestino irritável. 
Entender o papel dos micróbios que vivem em nosso intestino na inflamação ajudaria a fornecer uma visão mais ampla sobre um conjunto de doenças que, mesmo parecendo isoladas, poderiam ser tratadas com maior possibilidade de sucesso com uma visão mais ampla. Assim, conclui Balanzá, poderão ser feitas intervenções em psiquiatria “com tratamentos que habitualmente são vistos como medicina alternativa, como a dieta, o exercício e padrões de sono adequados” sabendo por que afetam a saúde.
FONTE:  http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/20/ciencia/1463758597_456201.html

Redesignação do sexo: a mudança física em busca da saúde mental

  • André Cabette Fábio  

  • Nascida, batizada e criada como menino em uma família conservadora, a transexual Cristiane Beatriz Santos não se conformava com seu órgão sexual desde os seis anos. “Entortava para ver se desaparecia”, usava cuecas apertadas. Mais de uma vez levou surras de seus pais por motivos como usar uma presilha no cabelo.
    Ela nasceu no começo dos anos 1980, na zona rural de Firminópolis, município com 11,6 mil pessoas a 100 km de Goiânia. Na adolescência, a aparição na TV da figura da transexual Roberta Close foi como uma “luz no fim do túnel”.
    Cristiane Beatriz domou os trejeitos e abriu mão de usar roupas ou penteado feminino na frente da família. Tornou-se um garoto estudioso e recluso, mas intimamente decidido: passaria pelo mesmo procedimento de Roberta Close assim que se tornasse independente.
    A história de Cristiane é representativa de um drama pelo qual milhares de transexuais mulheres e homens passam no Brasil na luta por assumir a própria identidade. Em 2009, ela realizou a cirurgia de redesignação sexual no Hospital das Clínicas de Goiânia, ligado à Universidade Federal de Goiás.
    “As pessoas acham que estamos brincando de ser mulher, mas não é assim. A coisa é muito importante para a gente. Desde que me entendo por gente sentia que tinha algo errado comigo no sentido biológico. Eu não entendia por que tinha aquele órgão”
    Cristiane Beatriz Santos
    Educadora Social e militante transexual do Fórum de Transexuais do Estado de Goiás
    A cirurgia se tornou mais acessível no país a partir de 2008, quando o SUS (Sistema Único de Saúde) passou a pagar por ela. Até 2015, foram realizadas 10.710 operações pelo SUS no Brasil, segundo o Ministério da Saúde.

    Evolução#

     
    Cristiane entrou com o pedido para realizar o processo no Hospital das Clínicas de Goiânia em 2007, antes mesmo de o procedimento ser formalmente adotado pelo SUS. Esse foi um dos fatores que permitiram que realizasse a operação após espera de apenas dois anos, um tempo relativamente curto.
    O Ministério da Saúde não tem dados sobre a quantidade de pessoas aguardando para realizar o procedimento, já que a fila é gerida de forma dispersa pelas instituições que o oferecem. Mas a espera é longa.
    Daniel Mori, psiquiatra do Ambulatório Transdisciplinar de Identidades de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, ligado à USP (Universidade de São Paulo), busca preparar suas pacientes para aguardar de 15 a 20 anos.
    Essa é a mesma informação passada pela psicóloga Salete Amador, que assessora a Coordenadoria Regional de Saúde do Centro da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, voltada ao atendimento de transexuais.
    No Brasil, os passos para realizar o processo de redesignação sexual são estabelecidos pela portaria 457 de 2008. O acesso passou a se estender também para trans-homens a partir de 2013, com a portaria 2.803. As regras valem para o SUS, mas também costumam ser adotadas como referência na rede privada, afirma Mori.

    Alteração física e saúde mental

    Cristiane conta que antes da operação não se sentia bem para ter intimidade com um parceiro sexual. Por não ter uma vagina, sempre achou muito difícil se sentir como mulher. “Eu falava ‘preciso operar porque preciso me sentir completa’.”
    Mas nem todo transexual tem a mesma experiência, e não é necessário realizar qualquer operação para se entender como trans. Aos 57 anos de idade, a cartunista Laerte se assumiu transexual sem realizar nenhum procedimento, por exemplo.
    O processo de redesignação pode se limitar ao uso de hormônios, ou a cirurgias plásticas em outras partes do corpo. Ele não precisa necessariamente incluir cirurgia no órgão sexual, e é buscado por transexuais que desejam fortalecer características associadas ao gênero com o qual se identificam, como ter pelos em mais partes do corpo no caso de trans-homens ou ter a voz mais fina no caso de trans-mulheres. Nas palavras de João Nery, o primeiro trans-homem brasileiro:
    “Não é a cirurgia que faz você mudar seu gênero, ela é apenas uma adequação para você se tornar inteligível na sociedade”
    João Nery
    Primeiro trans-homem brasileiro a realizar a cirurgia de redesignação sexual, psicólogo e militante da causa trans no Brasil
    O SUS reconhece que o processo de redesignação sexual não é um procedimento meramente estético, mas que diz respeito à saúde mental daqueles que o buscam. O sentimento de inadequação em relação ao próprio corpo está relacionado a problemas como depressão, ansiedade, traumas e mesmo suicídios.

    Tratamento controverso

    Por causa de todos esses problemas, a portaria 457 de 2008, do Ministério da Saúde, define a cirurgia de redesignação sexual como tratamento para a transexualidade. Ou seja, por um lado reconhece o direito de um transexual pleitear mudar o próprio corpo, mas por outro encara a transexualidade como uma doença.
    Essa ideia é combatida por militantes LGBT. Mas, assim como a homossexualidade foi considerada um transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde até 1990, a transexualidade ainda é tratada como doença, também pelo governo brasileiro. A expectativa, no entanto, é que esse entendimento seja modificado na próxima versão da CID (Classificação Internacional de Doenças), que deve ser publicada em 2016.

    Tratamento hormonal

    Depois que pleiteiam o processo de redesignação sexual, pacientes são avaliados por uma equipe multidisciplinar formada por assistentes sociais, psiquiatras, psicólogos e endocrinologistas, que buscam entender qual seu desejo. Muitos transexuais buscam apenas a terapia hormonal e não têm interesse em realizar a cirurgia para a redesignação sexual, por exemplo.
    Salete Amador afirma que no geral psicólogos dão sem grandes problemas o aval para que transexuais tomem hormônios.
    Cristiane conta que antes de ter acesso ao tratamento, tomava anticoncepcionais seguindo a indicação de amigas transexuais, mas que a diferença foi maior com o tratamento hormonal.
    Transexuais com identidade de gênero feminina usam progesterona e estrógeno. Cristiane diz que, com a terapia hormonal, o cheiro de seu suor ficou mais ameno, feminino e seus pelos mais macios. Até hoje, toma 180 comprimidos por mês que retira junto a uma unidade básica de saúde. Se pagasse pelos comprimidos, gastaria R$ 200 por mês, uma verba de que não dispõe.
    Segundo Mori, do Hospital das Clínicas de São Paulo, entre as modificações corporais nas quais o tratamento hormonal resulta estão: redistribuição da gordura corporal, que passa a se acumular mais no culote, nos seios e nas nádegas, crescimento das mamas e diminuição da quantidade de pelos pelo corpo. Os hormônios não alteram a voz.
    Para transexuais homens o tratamento é a base de testosterona. Esse hormônio também redistribui a gordura corporal, que fica menos concentrada nas nádegas, no culote e nos seios e mais na região abdominal. As mamas diminuem, o clitóris aumenta e mais pelos se proliferam pelo corpo. A voz fica mais grave.
    Foto: Sergio Gomes/Arquivo Pessoal
    Cristiane Beatriz Santos
    A transexual educadora social e militante Cristiane Beatriz Santos

    Tratamento psicológico

    A portaria do Ministério da Saúde estabelece que a idade mínima para procedimentos ambulatoriais, como a hormonoterapia, é de 18 anos. A idade mínima para procedimentos cirúrgicos é de 21 anos.
    Quando fez o pedido para realizar a operação, Cristiane já tinha quase trinta anos, e um histórico de militância na causa trans. Mesmo assim, precisou obter a aprovação de uma psicóloga para tomar hormônios, um procedimento determinado pela portaria do Ministério da Saúde. Essa também prevê pelo menos dois anos de atendimento psicológico antes das cirurgias.
    Muitos militantes LGBT criticam essa etapa por avaliarem que o psicólogo ou psiquiatra retira a independência de transexuais para decidirem sobre o próprio corpo.
    Daniel Mori, do Hospital das Clínicas, afirma que a maior parte do trabalho do psicólogo é "ajustar expectativas". “É muito comum o pensamento de que ‘quando operar, vou conseguir um emprego melhor, não vou ser visto como mulher trans ou homem trans, vou me casar’. Mas algumas coisas continuam as mesmas, situações de preconceito continuam sendo vividas”, diz.
    Cristiane diz que parte das transexuais decide, durante a terapia, que está satisfeita apenas com a terapia hormonal e não precisa realizar a operação de redesignação sexual. Ela avalia sua experiência com a psicóloga como positiva.
    “Foi como uma preparação. Contava do meu passado, contava da minha vida, não senti como se fosse uma triagem e nunca tive que provar que eu era mulher. Quando acordei na sala de recuperação, cheia de fios, imobilizada, confesso que disse ‘meu Deus o que fiz na minha vida?’, fiquei muito apreensiva por um momento. E minha psicóloga estava sempre do meu lado”
    Cristiane Beatriz Santos
    Educadora Social e militante transexual do Fórum de Transexuais do Estado de Goiás

    FONTE: https://www.nexojornal.com.br/reportagem/2016/05/27/Redesigna%C3%A7%C3%A3o-do-sexo-a-mudan%C3%A7a-f%C3%ADsica-em-busca-da-sa%C3%BAde-mental