A depressão e o suicídio dos escravos eram fatos corriqueiros
Renato Pinto Venâncio* | 01/02/2005 00h00
"Apareceu ontem enforcado com um baraço [corda de fios de
linho], dentro de um alçapão, na casa da rua da Alfândega, nº 376,
sobrado, o preto Dionysio, escravo de D. Olimpya Theodora de Souza,
moradora na mesma casa.
O infeliz preto, querendo sem dúvida apressar a
morte, fizera com uma thesoura pequenos ferimentos no braço ...” Essa
nota, publicada no Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 22 de
junho de 1872, revela uma faceta pouco conhecida da escravidão: os
escravos se suicidavam. E como.
O índice de “mortes voluntárias” entre
eles, quando comparado ao de homens livres, era duas ou três vezes mais
elevado. Os suicídios de escravos também se diferenciavam noutros
aspectos. O mais notável deles era o fato de atribuir-se o gesto ao
banzo.
Ainda hoje se discute o significado dessa palavra. O mais aceito tem
uma remota origem africana, equivalendo a “pensar” ou “meditar”. O termo
também, há tempos, designou uma doença.
Em 1799, por exemplo, Luiz
António de Oliveira Mendes apresentou, na Academia Real de Ciências de
Lisboa, um estudo sobre “as doenças agudas e crônicas que mais
freqüentemente acometem os pretos recém-tirados da África”. O banzo
constava entre elas. Os sintomas? Os escravos ficavam entristecidos,
paravam de falar e, acima de tudo, deixavam de se alimentar, mesmo
“oferecendo-se-lhes” – afirma o médico – “as melhores comidas, assim do
nosso trato e costume, como as do seu país...”, falecendo pouco tempo
depois.
No século 19, com o desenvolvimento das primeiras teorias
psicológicas, o comportamento dos escravos banzeiros foi reconhecido
como distúrbio mental. Em 1844, Joaquim Manoel de Macedo, na tese médica
intitulada Considerações Sobre a Nostalgia, afirma o seguinte: “[...]
estamos convencidos de que a espantosa mortandade que entre nós se
observa nos africanos, principalmente nos recém-chegados, bem como de
que o número de suicídios que entre eles se conta, tem seu tanto de
dívida a nostalgia [...]”
Aos poucos, a associação entre nostalgia e banzo se tornou popular.
No Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de 1875, de Joaquim de
Macedo Soares, é possível ler a seguinte definição: “banzar: estar
pensativo sobre qualquer caso; triste sem saber de quê; sofrer do spleen
dos ingleses; tristeza e apatia simultânea; sofrer de nostalgia, como
os negros da Costa quando vinham para cá, e ainda depois de cá estarem”.
Hoje, a palavra “nostalgia”, difundida na literatura, é sinônimo de
“saudade”, um sentimento. Situação bem diferente é pensá-la como doença.
Tal rótulo – assim como o de banzo – provavelmente encobria uma vasta
gama de problemas psicológicos ou psiquiátricos, que iam da depressão à
esquizofrenia; ou eram provocados pela desnutrição, por doenças
contagiosas, ou por consumo excessivo de álcool e drogas – como a
maconha, apreciada por muitos escravos, que a chamavam de “pango”.
Não faltam exemplos de aproximações entre suicídio e doença mental. O
citado Jornal do Commercio registra ocorrências de mortes voluntárias
associadas a delírios: “Valentim, escravo de Faria & Miranda,
estabelecidos na rua dos Lázaros nº 26, sofria há dias violenta febre, e
era tratado pelo Dr. Antonio Rodrigues de Oliveira. Anteontem [20 de
maio de 1872], às 9 horas da noite, ao que parece, em um acesso mais
forte, Valentim feriu-se com um golpe no pescoço”.
Outras vezes se
reconhecia explicitamente a loucura: “Suicidou-se ontem [8 de março de
1872] à 1 hora da tarde, enforcando-se, a preta africana Justina, de 50
anos, escrava de Narciso da Silva Galharno. O Sr. 2º Delegado tomou
conhecimento do fato e procedeu a corpo delito. Consta que a preta
sofria de alienação mental”.
Como todos os testemunhos do passado, os textos acima devem ser lidos
com olhos críticos: o registro de suicídio pode encobrir assassinatos
praticados por senhores. Tal fato não implica em diminuir o banzo como
uma das expressões trágicas da loucura comum a milhões de pessoas
vítimas do tráfico de escravos. Por outro lado, a divulgação desse
sofrimento nos jornais deve ter contribuído para a formação da
sensibilidade abolicionista na sociedade imperial.
Por isso, o banzo
pode ser entendido como uma forma não intencional de protesto político,
um exemplo primário de luta pela não-violência.
*Professor de história da Universidade Federal de Ouro Preto e
co-autor do livro Ancestrais: Uma Introdução à História da África
Atlântica, Campus, 2003
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