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terça-feira, 14 de agosto de 2012

QUE É SER FAMILIAR DE DOENTE MENTAL

A implementação da política de ressocialização e de desinstitucionalização da assistência psiquiátrica vem-se fortalecendo cada vez mais nos últimos anos. Como era de se esperar, as modificações efetuadas na política assistencial não foram suficientes para resolver todos os problemas da psiquiatria. Sem dúvida elas promoveram avanços significativos na assistência, mas também criaram novos problemas que ainda não foram superados.
A atual política de saúde mental preconiza que se evite ao máximo as internações psiquiátricas e que estas, quando inevitáveis, tenham a menor duração possível. Deve-se dar preferência ao tratamento ambulatorial e todo o quadro assistencial deve estar mobilizado para promover a “desospitalização” imediata dos pacientes que estão submetidos a internações prolongadas. O resultado prático desta nova postura foi uma redução dramática no número de pacientes institucionalizados e uma tendência crescente de o número de altas ultrapassar o número de admissões. Estudos recentes calculam que 65% dos pacientes portadores de distúrbio mental crônico, que viviam em clínicas públicas ou privadas, já estão vivendo na comunidade. Calcula-se que um percentual semelhante de esquizofrênicos, que até então estavam submetidos a internações prolongadas, já estão fora dos hospitais psiquiátricos.
Apesar de todos os incentivos, vários estudos demonstram que a maior parte dos pacientes que foram submetidos a internações de longa duração não consegue levar uma vida normal quando retornam para a comunidade. Mesmo nos países desenvolvidos a maioria permanece desempregada, com problemas de moradia, sem amparo econômico e sem uma rede de apoio social satisfatória. O percentual de pacientes que não conseguem uma reintegração adequada, que passam a viver por conta própria ou em ambientes supervisionados e subsidiados pelo estado, é inexpressivo. Estudos feitos em diferentes países indicam que após a alta mais de 50% dos pacientes crônicos voltaram a viver sob total responsabilidade e dependência das famílias. Minkoff estima que, nos EUA, de cada 100 pacientes que saem de alta 34 a 40% voltam a viver com os cônjuges e de 35 a 40% com outros familiares.
Um conjunto de circunstâncias fez com que os cuidadores se transformassem no lastro de sustentação dos programas de saúde mental comunitária. Subitamente, as famílias e/ou os seus substitutos se transformaram nos principais agentes de assistência ao doente mental crônico, assumindo um papel que até recentemente era de responsabilidade exclusiva do Estado.
As repercussões da política de desinstitucionalização sobre os cuidadores é um capítulo da psiquiatria pouco estudado. Até recentemente, esses problemas eram subestimados e a avaliação dos profissionais se limitava, quando muito, à observação passiva das queixas que lhes eram feitas. Estudos mais modernos demonstram metodologicamente equivocadas, pois os familiares dos doentes crônicos, por total falta de esperança ou em função de experiências prévias desfavoráveis, evitam fazer qualquer tipo de queixa.
Com a implantação da política da desinstitucionalização os cuidadores começaram a se organizar e passaram a fazer uma série de reivindicações para suportar o papel que lhes foi conferido. A primeira referência sobre o sofrimento dos familiares aparece em 1946 com Treudley, que introduziu o conceito de “burden” na literatura psiquiátrica inglesa. Na língua portuguesa as palavras que mais se aproximam do conceito de “burden” são sobrecarga, fardo e peso. O caráter pejorativo associado à idéia de fardo e a ampla utilização de peso com medida física nos levou a considerar que a melhor tradução para o termo “burden” é sobrecarga.
Quase sempre o convívio com o paciente psiquiátrico produz uma sobrecarga intensa que acaba por comprometer a saúde, vida social, relação com outros membros da família, lazer, disponibilidade financeira, rotina doméstica, desempenho profissional e escolar e inúmeros outros aspectos da vida dos familiares ou substitutos. Os cuidadores que se dedicam aos pacientes mais debilitados investem tempo e energia na busca  de tratamento e nas negociações para que eles aceitem se tratar. A interação com os serviços de saúde mental também é uma fonte de sobrecarga, pois na maioria das vezes  os contatos são vivenciados como uma experiência frustrante, confusa e humilhante. Hanson relata a situação da mãe de um esquizofrênico crônico que diante dos impasses vividos entre as propostas dos profissionais e o comportamento do seu filho, surpreendeu o filho com o seguinte questionamento: “Por que você insiste em não ser um doente como eles querem?”
Ter um familiar com quadro psicótico agudo é uma experiência ímpar que muitas vezes envolve vizinhos, serviço médico, polícia e bombeiros. Promover a internação compulsória de uma pessoa que se estima é uma opção dolorosa e carregada de ambivalências. O sofrimento é ainda mais intenso quando se reconhece que internar não é o procedimento mais recomendado para o paciente, mas que, infelizmente, em função da total omissão dos responsáveis pelo planejamento na área de saúde mental, essa é a única forma de assistência disponível.
Não obstante às múltiplas fontes de sofrimento, a maioria dos cuidadores considera que a experiência mais dramática e a maior fonte de sofrimento é a percepção das angústias e da vida cada vez mais “empobrecida” do paciente. Muitos não se conformam em ver um parente, que até então era brilhante, cheio de projetos de vida e socialmente bem integrado, se transformar numa pessoa comprometida, dependente , desprotegida e tomada por limitações  de toda natureza.
A presença do familiar  do doente obriga os cuidadores a refazer os seus planos de vida e a redefinir integralmente os seus objetivos. À medida que a idade avança, as preocupações com o destino do paciente se tornam inevitáveis. Com o passar dos anos e com a conscientização da proximidade da morte, os pais acabam aprisionados por uma angústia insolúvel que é fruto das incertezas que cercam o futuro do filho. Após observar a freqüência e a semelhança das experiências vivenciadas pelos familiares, Lefley propôs que a situação fosse reconhecida como uma síndrome  que ele dominou de “when I am gone”. Esse mesmo tipo de preocupação é observado no nosso meio, com os cuidadores expressando as suas angústias com frases do tipo  “e depois que eu me for”.
Apesar dos intensos transtornos e do sofrimento observado,  as famílias dos esquizofrênicos quase sempre aceitam conviver com os pacientes e suportam toda a sobrecarga que lhes é imposta.  Independentemente da ideologia dos serviços de saúde, da renda “per capita” do país, do tempo e número de internações, enfim, de inúmeras outras variáveis, as famílias ainda representam a principal alternativa ao hospital psiquiátrico.
Na prática os cuidadores vivem uma situação kafkaniana pois além das dificuldades decorrentes do convívio com o paciente e de todo o comprometimento dos projetos pessoais, eles ainda têm que enfrentar alguns profissionais de saúde  mental que insistem em responsabilizá-los pela doença do paciente e por todas as mazelas que vivenciam. Muitos se ressentem por serem responsabilizados pelas agitações e inquietudes do paciente e por serem acusados de desestimulantes e negligentes quando o paciente fica apático e inerte. Como se não bastasse, quando não conseguem  executar as medidas previstas dentro dos projetos terapêuticos, passam a ser acusados de sabotadores e omissos, independentemente de qualquer avaliação sobre a sua exeqüibilidade.
No nosso meio, muitos profissionais ainda são partidários de uma concepção equivocada, onde se pressupõe que se a família tivesse adotado um outro padrão de relacionamento com o paciente não haveria doença. Sem dúvida esse modelo etiológico da doença mental tem efeitos desfavoráveis para os cuidadores, pois cria uma atmosfera pouco amistosa e tende a inibir as manifestações de solidariedade e amparo que as famílias desejam receber dos profissionais e da comunidade. Muitos familiares se sentem acusados como se fossem os “bruxos” da era moderna.
Durante décadas as famílias foram alijadas do processo terapêutico e o acesso aos serviços de saúde mental ficou limitado aos cuidadores que se reconheciam como culpados e que se dispunham a participar de uma “terapia familiar”, na qual deveriam ser exorcizados. O resultado de tudo isso foi um aumento no sofrimento dos cuidadores, o acúmulo de experiências humilhantes e o aumento do abandono dos pacientes mais graves e debilitados. Poucos foram os profissionais que reconheciam os efeitos colaterais desses tratamentos nos pacientes e familiares.
O acúmulo de experiências desastrosas e o retorno dos pacientes à comunidade superaram o ”marketing” dessas teorias e permitiram que houvesse um novo entendimento sobre o papel dos cuidadores nos programas terapêuticos e na implantação das políticas de saúde mental. A partir do final da década de 70 os profissionais de saúde começaram a se preocupar em dar apoio e a valorizar o familiar ou o seu substituto, pois reconheceram que eles representam um segmento determinante para o sucesso dos programas de desinstitucionalização.
Atualmente o que se preconiza é a orientação e apoio para os familiares. Os estudos sobre a emoção expressada demonstram como a família interfere na evolução do quadro clínico, no número e no tempo médio das internações. Estudos de segmento apuraram que a probabilidade do quadro clínico evoluir de forma desfavorável é significativamente maior nas famílias onde existe um criticismo exacerbado ou superenvolvimento afetivo com o familiar doente do que nas famílias sem estas  características. Os pesquisadores fazem questão de ressaltar que o clima familiar de maior criticismo ou de superenvolvimento não deve ser considerado como “o” agente etiológico da doença mental, mas sim como mais um fator desfavorável. Neste modelo a esquizofrenia seria uma situação de vulnerabilidade ao estresse, biologicamente condicionada, e o criticismo e o superenvolvimento funcionariam como uma “superestimulação” desfavorável para os esquizofrênicos.
Atualmente, existe um consenso de que a intervenção na sua família influi favoravelmente no curso da doença.
Ryglewcz sugere que tanto os familiares como os profissionais podem se beneficiar de programas educacionais que visam ajudar a reduzir  os efeitos do estresse ambiental sobre o paciente. Nestes programas as famílias recebem apoio; informações sobre a doença e uso de medicamentos; ajuda para identificar as fontes de estresse e técnicas para reduzi-lo; informações sobre como lidar com o paciente; e são incentivadas a valorizar as suas necessidades e a dos outros membros da família. Muitos desses estudos demonstram uma correlação positiva significativa entre o uso de técnicas psicoeducacionais, baixas doses de medicamentos e a redução na taxa de “reagudização” do quadro psicótico.
Apesar  de todos esses avanços, o número de centros de saúde mental que oferecem programas específicos de apoio para os cuidadores e que aceitam como aliados na elaboração dos projetos terapêuticos e de reabilitação é extremamente reduzido. Infelizmente, na maioria dos serviços o único papel reservado para a família é o de agente custodial  e, normalmente, não se considera a necessidade de eles receberem informações sobre a doença, de expressarem os seus pontos de vista e as suas dificuldades.

Zedyr  Macedo
Presidente da Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil – AFDM-BRASIL
 FONTE: http://www.mentalhealth.com.br/manual/fam_doente.htm

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