A
implementação da política de ressocialização e de desinstitucionalização
da assistência psiquiátrica vem-se fortalecendo cada vez mais nos últimos
anos. Como era de se esperar, as modificações efetuadas na política
assistencial não foram suficientes para resolver todos os problemas da
psiquiatria. Sem dúvida elas promoveram avanços significativos na assistência,
mas também criaram novos problemas que ainda não foram superados.
A
atual política de saúde mental preconiza que se evite ao máximo as
internações psiquiátricas e que estas, quando inevitáveis, tenham a
menor duração possível. Deve-se dar preferência ao tratamento
ambulatorial e todo o quadro assistencial deve estar mobilizado para
promover a “desospitalização” imediata dos pacientes que estão
submetidos a internações prolongadas. O resultado prático desta nova
postura foi uma redução dramática no número de pacientes
institucionalizados e uma tendência crescente de o número de altas
ultrapassar o número de admissões. Estudos recentes calculam que 65% dos
pacientes portadores de distúrbio mental crônico, que viviam em clínicas
públicas ou privadas, já estão vivendo na comunidade. Calcula-se que um
percentual semelhante de esquizofrênicos, que até então estavam
submetidos a internações prolongadas, já estão fora dos hospitais psiquiátricos.
Apesar
de todos os incentivos, vários estudos demonstram que a maior parte dos
pacientes que foram submetidos a internações de longa duração não
consegue levar uma vida normal quando retornam para a comunidade. Mesmo nos
países desenvolvidos a maioria permanece desempregada, com problemas de
moradia, sem amparo econômico e sem uma rede de apoio social satisfatória.
O percentual de pacientes que não conseguem uma reintegração adequada,
que passam a viver por conta própria ou em ambientes supervisionados e
subsidiados pelo estado, é inexpressivo. Estudos feitos em diferentes países
indicam que após a alta mais de 50% dos pacientes crônicos voltaram a
viver sob total responsabilidade e dependência das famílias. Minkoff
estima que, nos EUA, de cada 100 pacientes que saem de alta 34 a 40% voltam
a viver com os cônjuges e de 35 a 40% com outros familiares.
Um
conjunto de circunstâncias fez com que os cuidadores se transformassem no
lastro de sustentação dos programas de saúde mental comunitária.
Subitamente, as famílias e/ou os seus substitutos se transformaram nos
principais agentes de assistência ao doente mental crônico, assumindo um
papel que até recentemente era de responsabilidade exclusiva do Estado.
As
repercussões da política de desinstitucionalização sobre os cuidadores
é um capítulo da psiquiatria pouco estudado. Até recentemente, esses
problemas eram subestimados e a avaliação dos profissionais se limitava,
quando muito, à observação passiva das queixas que lhes eram feitas.
Estudos mais modernos demonstram metodologicamente equivocadas, pois os
familiares dos doentes crônicos, por total falta de esperança ou em função
de experiências prévias desfavoráveis, evitam fazer qualquer tipo de
queixa.
Com
a implantação da política da desinstitucionalização os cuidadores começaram
a se organizar e passaram a fazer uma série de reivindicações para
suportar o papel que lhes foi conferido. A primeira referência sobre o
sofrimento dos familiares aparece em 1946 com Treudley, que introduziu o
conceito de “burden” na literatura psiquiátrica inglesa. Na língua
portuguesa as palavras que mais se aproximam do conceito de “burden” são
sobrecarga, fardo e peso. O caráter pejorativo associado à idéia de fardo
e a ampla utilização de peso com medida física nos levou a considerar que
a melhor tradução para o termo “burden” é sobrecarga.
Quase
sempre o convívio com o paciente psiquiátrico produz uma sobrecarga
intensa que acaba por comprometer a saúde, vida social, relação com
outros membros da família, lazer, disponibilidade financeira, rotina doméstica,
desempenho profissional e escolar e inúmeros outros aspectos da vida dos
familiares ou substitutos. Os cuidadores que se dedicam aos pacientes mais
debilitados investem tempo e energia na busca
de tratamento e nas negociações para que eles aceitem se tratar. A
interação com os serviços de saúde mental também é uma fonte de
sobrecarga, pois na maioria das vezes os
contatos são vivenciados como uma experiência frustrante, confusa e
humilhante. Hanson relata a situação da mãe de um esquizofrênico crônico
que diante dos impasses vividos entre as propostas dos profissionais e o
comportamento do seu filho, surpreendeu o filho com o seguinte
questionamento: “Por que você insiste em não ser um doente como eles
querem?”
Ter
um familiar com quadro psicótico agudo é uma experiência ímpar que
muitas vezes envolve vizinhos, serviço médico, polícia e bombeiros.
Promover a internação compulsória de uma pessoa que se estima é uma opção
dolorosa e carregada de ambivalências. O sofrimento é ainda mais intenso
quando se reconhece que internar não é o procedimento mais recomendado
para o paciente, mas que, infelizmente, em função da total omissão dos
responsáveis pelo planejamento na área de saúde mental, essa é a única
forma de assistência disponível.
Não
obstante às múltiplas fontes de sofrimento, a maioria dos cuidadores
considera que a experiência mais dramática e a maior fonte de sofrimento
é a percepção das angústias e da vida cada vez mais “empobrecida” do
paciente. Muitos não se conformam em ver um parente, que até então era
brilhante, cheio de projetos de vida e socialmente bem integrado, se
transformar numa pessoa comprometida, dependente , desprotegida e tomada por
limitações de toda natureza.
A
presença do familiar do doente
obriga os cuidadores a refazer os seus planos de vida e a redefinir
integralmente os seus objetivos. À medida que a idade avança, as preocupações
com o destino do paciente se tornam inevitáveis. Com o passar dos anos e
com a conscientização da proximidade da morte, os pais acabam aprisionados
por uma angústia insolúvel que é fruto das incertezas que cercam o futuro
do filho. Após observar a freqüência e a semelhança das experiências
vivenciadas pelos familiares, Lefley propôs que a situação fosse
reconhecida como uma síndrome que
ele dominou de “when I am gone”. Esse mesmo tipo de preocupação é
observado no nosso meio, com os cuidadores expressando as suas angústias
com frases do tipo “e depois
que eu me for”.
Apesar
dos intensos transtornos e do sofrimento observado,
as famílias dos esquizofrênicos quase sempre aceitam conviver com
os pacientes e suportam toda a sobrecarga que lhes é imposta.
Independentemente da ideologia dos serviços de saúde, da renda
“per capita” do país, do tempo e número de internações, enfim, de inúmeras
outras variáveis, as famílias ainda representam a principal alternativa ao
hospital psiquiátrico.
Na
prática os cuidadores vivem uma situação kafkaniana pois além das
dificuldades decorrentes do convívio com o paciente e de todo o
comprometimento dos projetos pessoais, eles ainda têm que enfrentar alguns
profissionais de saúde mental
que insistem em responsabilizá-los pela doença do paciente e por todas as
mazelas que vivenciam. Muitos se ressentem por serem responsabilizados pelas
agitações e inquietudes do paciente e por serem acusados de
desestimulantes e negligentes quando o paciente fica apático e inerte. Como
se não bastasse, quando não conseguem
executar as medidas previstas dentro dos projetos terapêuticos,
passam a ser acusados de sabotadores e omissos, independentemente de
qualquer avaliação sobre a sua exeqüibilidade.
No
nosso meio, muitos profissionais ainda são partidários de uma concepção
equivocada, onde se pressupõe que se a família tivesse adotado um outro
padrão de relacionamento com o paciente não haveria doença. Sem dúvida
esse modelo etiológico da doença mental tem efeitos desfavoráveis para os
cuidadores, pois cria uma atmosfera pouco amistosa e tende a inibir as
manifestações de solidariedade e amparo que as famílias desejam receber
dos profissionais e da comunidade. Muitos familiares se sentem acusados como
se fossem os “bruxos” da era moderna.
Durante
décadas as famílias foram alijadas do processo terapêutico e o acesso aos
serviços de saúde mental ficou limitado aos cuidadores que se reconheciam
como culpados e que se dispunham a participar de uma “terapia familiar”,
na qual deveriam ser exorcizados. O resultado de tudo isso foi um aumento no
sofrimento dos cuidadores, o acúmulo de experiências humilhantes e o
aumento do abandono dos pacientes mais graves e debilitados. Poucos foram os
profissionais que reconheciam os efeitos colaterais desses tratamentos nos
pacientes e familiares.
O
acúmulo de experiências desastrosas e o retorno dos pacientes à
comunidade superaram o ”marketing” dessas teorias e permitiram que
houvesse um novo entendimento sobre o papel dos cuidadores nos programas
terapêuticos e na implantação das políticas de saúde mental. A partir
do final da década de 70 os profissionais de saúde começaram a se
preocupar em dar apoio e a valorizar o familiar ou o seu substituto, pois
reconheceram que eles representam um segmento determinante para o sucesso
dos programas de desinstitucionalização.
Atualmente
o que se preconiza é a orientação e apoio para os familiares. Os estudos
sobre a emoção expressada demonstram como a família interfere na evolução
do quadro clínico, no número e no tempo médio das internações. Estudos
de segmento apuraram que a probabilidade do quadro clínico evoluir de forma
desfavorável é significativamente maior nas famílias onde existe um
criticismo exacerbado ou superenvolvimento afetivo com o familiar doente do
que nas famílias sem estas características.
Os pesquisadores fazem questão de ressaltar que o clima familiar de maior
criticismo ou de superenvolvimento não deve ser considerado como “o”
agente etiológico da doença mental, mas sim como mais um fator desfavorável.
Neste modelo a esquizofrenia seria uma situação de vulnerabilidade ao
estresse, biologicamente condicionada, e o criticismo e o superenvolvimento
funcionariam como uma “superestimulação” desfavorável para os
esquizofrênicos.
Atualmente,
existe um consenso de que a intervenção na sua família influi
favoravelmente no curso da doença.
Ryglewcz
sugere que tanto os familiares como os profissionais podem se beneficiar de
programas educacionais que visam ajudar a reduzir
os efeitos do estresse ambiental sobre o paciente. Nestes programas
as famílias recebem apoio; informações sobre a doença e uso de
medicamentos; ajuda para identificar as fontes de estresse e técnicas para
reduzi-lo; informações sobre como lidar com o paciente; e são
incentivadas a valorizar as suas necessidades e a dos outros membros da família.
Muitos desses estudos demonstram uma correlação positiva significativa
entre o uso de técnicas psicoeducacionais, baixas doses de medicamentos e a
redução na taxa de “reagudização” do quadro psicótico.
Apesar
de todos esses avanços, o número de centros de saúde mental que
oferecem programas específicos de apoio para os cuidadores e que aceitam
como aliados na elaboração dos projetos terapêuticos e de reabilitação
é extremamente reduzido. Infelizmente, na maioria dos serviços o único
papel reservado para a família é o de agente custodial
e, normalmente, não se considera a necessidade de eles receberem
informações sobre a doença, de expressarem os seus pontos de vista e as
suas dificuldades.
Zedyr
Macedo
Presidente
da Associação de Amigos, Familiares e Doentes Mentais do Brasil –
AFDM-BRASIL
FONTE: http://www.mentalhealth.com.br/manual/fam_doente.htm
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