Consideramos que o momento atual do trabalho de enfermagem em saúde mental caracteriza-se pela transição entre uma prática de cuidado hospitalar que visava a contenção do comportamento dos "doentes mentais" e a incorporação de princípios novos e desconhecidos, que busca adequar-se a uma prática interdisciplinar, aberta às contingências dos sujeitos envolvidos em cada momento e em cada contexto, superando a perspectiva disciplinar de suas ações. É, portanto, período crítico para a profissão e favorável para o conhecimento e análise do processo de trabalho nessa área.
Se compreendemos a produção científica da enfermagem como um instrumento do seu processo de trabalho, podemos considerar que as mudanças que ocorrem nos instrumentos – materiais (equipamentos) ou não-materiais (métodos, por exemplo) – decorrem das mudanças da finalidade desse trabalho(15). Se analisarmos o trabalho em saúde mental sob essa perspectiva poderíamos afirmar que na psiquiatria "pineliana" o hospício – compreendido como a reclusão, os métodos físicos, a figura de autoridade do médico/alienista e a disciplina e higiene impostas pelos enfermeiros - era o instrumento adequado para a finalidade - cura/reeducação do "louco" - nesse momento considerado "alienado". Na atualidade, no paradigma da Reforma Psiquiátrica, os instrumentos materiais mais evidentes são os NAPS e CAPS (Núcleos e/ou Centros de Atendimento Psicossocial); hospitais-dia, enfermarias e ambulatórios em hospitais gerais. Necessário se faz, portanto, refletirmos sobre os instrumentos não-materiais dessa organização do trabalho, seus métodos, suas bases teóricas, especificamente utilizadas no trabalho dos enfermeiros que, por sua vez, insere-se num contexto histórico de trabalho em saúde e, nesse processo, indagarmos também qual é a finalidade para a qual esses instrumentos estão relacionados. Ou, dito de outra forma, refletirmos sobre a finalidade do processo de trabalho dos enfermeiros de saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica que orienta a utilização dos atuais instrumentos de trabalho nesse processo.
Revisando a literatura, constatamos que muitos enfermeiros têm realizado estudos que buscam refletir sobre o seu trabalho nos serviços de saúde mental nos últimos anos. Apresentaremos alguns deles para analisarmos quais têm sido as concepções de objeto, instrumentos e finalidade do trabalho realizado pelos enfermeiros e, assim, permitir a compreensão sobre o que tem se constituído como trabalho do enfermeiro nesse setor.
Há estudos que consideram que existem várias tendências teóricas influenciando a prática psiquiátrica atualmente e que há deficiências no processo de formação de enfermeiros que atuam em psiquiatria(16-17). Alguns deles concluem que há indefinição dos profissionais de enfermagem psiquiátrica sobre o seu papel nessa assistência o que provoca, muitas vezes, uma "fuga" para o desempenho de atividades burocrático-administrativas (16,18-20). Essa é a "identidade possível" para esses profissionais que vivenciam uma prática marcada pela indefinição de seu papel(16).
Esses mesmos estudos(17-20) afirmam que, embora a literatura especializada na área aponte uma convergência teórica em torno da compreensão de que o papel do enfermeiro em serviços de saúde mental é o de "agente terapêutico, cujo objetivo fundamental é auxiliar o paciente a aceitar a si próprio e a melhorar as suas relações pessoais"(18), o trabalho efetivo dos enfermeiros centra-se, principalmente, no desenvolvimento de atividades burocrático-administrativas.
Complementarmente, alguns desses estudos(19-20) apontam que em serviços extra-hospitalares de saúde mental, os enfermeiros, entre todos os profissionais da equipe, são aqueles que menos realizam atendimentos diretos à clientela e a sua prática caracteriza-se pelo gerenciamento intermediário que organiza e facilita o trabalho de toda a equipe.
Uma das constatações sobre a atuação dos profissionais de enfermagem em saúde mental e a inserção da assistência de enfermagem no contexto atual de mudanças políticas, caracterizadas pela Reforma Psiquiátrica(17,20-21), aponta que a maioria dos enfermeiros não se sente preparada para atuar em Enfermagem Psiquiátrica ou Saúde Mental e não está adequadamente informada sobre as mudanças políticas que vêm ocorrendo na área.
Sobre a concepção de objeto que permeia o processo de trabalho dos enfermeiros em saúde mental, estudos(21-22) demonstram que, apesar do discurso dos enfermeiros estar orientado para a desconstrução do saber psiquiátrico e para a superação das práticas manicomiais, o paradigma predominante em suas ações é o modelo organicista. Os enfermeiros mantêm as práticas tradicionais – triagem e controle principalmente medicamentoso dos pacientes em crise – embora o discurso aponte para atividades de relacionamento interpessoal e trabalho interdisciplinar(21). Assim, embora reconheçam a limitação daquele modelo médico psiquiátrico na abordagem do sujeito com transtornos mentais, ocupam-se, rotineiramente, de sua "doença mental" ao controlar o comportamento dos usuários e, apesar de criticar o tratamento ofertado pela instituição - pautado pelo modelo organicista - não se percebem como agentes de transformação dessa realidade(22).
Os estudos(16-22) por nós relacionados destacam a presença de uma longa distância entre o discurso presente na formação especializada em enfermagem psiquiátrica e de saúde mental e o trabalho de enfermagem nessa área. Reconhece-se uma nova conformação teórica do objeto: não mais o "doente mental" internado que deve ser contido e controlado, mas o "portador de transtornos mentais" ou o sujeito com "sofrimento psíquico" que merece ser atendido nas suas necessidades psicossociais. Entretanto, a esse novo desenho de objeto não correspondem estratégias de intervenção que visem a assistência/recuperação desse sujeito. Ou seja, os instrumentos do trabalho de enfermagem, nessa área, alinham-se mais na direção da reafirmação da concepção organicista de objeto, característica da medicina psiquiátrica do que da Reforma Psiquiátrica que pressupõe uma ampliação/superação do objeto, incorporando também características psicossociais.
Apontam também uma característica do trabalho dos enfermeiros - que se repete em alguma medida em outras áreas de assistência - relacionada ao fato de que grande parte do tempo é destinada ao desempenho de atividades administrativo-burocráticas e não de administração da assistência, que é uma atividade de enfermagem. Assim, os enfermeiros se ocupam, muitas vezes de forma prioritária, com atividades que têm por finalidade a organização do trabalho dos demais profissionais e, portanto, o trabalho do enfermeiro e do corpo de técnicos e auxiliares de enfermagem passa a ser o meio/instrumento do trabalho médico e psicológico, com escassa ou nenhuma atuação técnico-assistencial específica.
Ao refletirmos sobre as necessidades e possibilidades específicas do trabalho de enfermagem em equipe de saúde mental, na perspectiva de ampliação do objeto de intervenção proposto pela Reforma Psiquiátrica, o trabalho nessa área ganha novos contornos, como, por exemplo, apresenta-se a necessidade de que a esse objeto redesenhado, corresponda novos instrumentos e, nesse sentido, aconteçam algumas modificações nas práticas terapêuticas, como a incorporação de trabalhadores "atípicos" na equipe, como artistas plásticos, professores de educação física, dentre outros; além do que a finalidade do trabalho proposto nessa concepção não admite mais a noção de "cura", mas de reabilitação, reinserção social e, portanto, os instrumentos para esse fim não podem continuar sendo os meios físicos e químicos coercitivos, mas outros que proporcionem a escuta e a valorização do sujeito-cidadão que sofre mentalmente.
Essas modificações no processo de trabalho de saúde mental levam-nos a considerar a necessidade de mudanças na divisão desse trabalho coletivo(23). Esse trabalho interdisciplinar pressupõe a coexistência de ações técnicas privativas dos profissionais e a execução de algumas ações comuns com tendência à horizontalização das relações de poder. Entretanto, essa aproximação das áreas profissionais no plano técnico do trabalho – desempenho de atividades com uma diluição gradativa das peculiaridades – é acompanhada de tensão no aspecto dos valores dos diferentes trabalhos, uma vez que as relações hierárquicas são mantidas e reproduzidas, principalmente entre os profissionais médicos e não-médicos, referentes a salário e ao fato de o médico ser o responsável pela atenção ao usuário(23).
A dificuldade de co-responsabilizar-se pela assistência é freqüentemente observada na prática dos enfermeiros que trabalham em serviços de saúde mental. De uma maneira geral, eles usam como argumento a falta de autonomia, a ingerência do médico na assistência de enfermagem, enfim, a submissão do trabalho de enfermagem ao trabalho médico, mas, ao mesmo tempo, permanecem comodamente nessa situação, como que a auferir alguma vantagem, ou seja, se não participam das decisões do tratamento e, algumas vezes, nem daquelas relacionadas às próprias ações de enfermagem, também não se responsabilizam pelo tratamento. Assim, aliado ao fato de maior valorização salarial do profissional médico, que ocorre freqüentemente nos serviços, reforça-se o seu papel de responsável técnico por todo o tratamento. Os enfermeiros, portanto, estão demonstrando dificuldades na definição do objeto de trabalho no paradigma da Reforma Psiquiátrica, ou seja, nessa equipe de saúde mental, que define como objeto de intervenção o sujeito-cidadão em suas necessidades psicossociais, o enfermeiro não se define como sujeito-trabalhador. Assim, podemos indagar qual é a condição desse profissional conduzir-se em relação a uma assistência cuja orientação é a reinserção social da pessoa com transtornos mentais - o resgate da cidadania desse sujeito - quando ele mesmo não se posiciona na equipe como sujeito-cidadão.
Na necessária redefinição da divisão do trabalho na equipe de saúde mental, o enfermeiro tem sido um profissional pouco atuante, como afirmam os estudos acima destacados. Isso se reflete em procedimentos tecnicamente pouco visíveis no conjunto do trabalho em equipe, quando não em ações de acomodação às práticas médicas e administrativas inadequadas técnica e eticamente.
Acreditamos na possibilidade de se construir no cotidiano, nos confrontos e nas contradições entre o processo de reprodução e recriação, próprios da prática de enfermagem, um processo contra-hegemônico que, identificado com os preceitos da Reforma Psiquiátrica, resgate os atores envolvidos (trabalhadores e usuários) como sujeitos sociais. Consideramos que, principalmente nesse processo cotidiano, é onde reside a potencialidade implícita de autonomia profissional dos enfermeiros. Nesse processo, conforme apontado em alguns estudos(24), através da utilização de mecanismos de resistência velada, difusa e até explícita aos saberes e práticas médico-psiquiátricas dominantes, encontra-se a possibilidade de sua ruptura, pois, "embora, ao estar inserido socialmente, o próprio sujeito experiencie a sujeição à ideologia dominante, reside [igualmente] nele a possibilidade de ruptura com essa ideologia"(24). Parece ser, portanto, nesse processo de constituição dos profissionais como sujeitos-sociais, sujeitos-cidadãos que, ao se perceberem criticamente como co-responsáveis por um trabalho coletivo, também se responsabilizam por todos os atos desse trabalho e utilizam (ou não utilizam) as possibilidades de ruptura com os saberes e práticas hegemônicas, que reside a possibilidade de superação das práticas custodiais e burocráticas do trabalho de enfermagem em saúde mental.
Nesse contexto do trabalho de enfermagem em saúde mental, marcado historicamente pelo modelo médico disciplinador de sujeitos e de comunidades, onde as práticas de enfermagem eram subordinadas e coadjuvantes do processo médico-político disciplinador, o enfermeiro é, potencialmente, importante agente de mudança; entretanto, essa potencialidade estará diretamente relacionada ao grau de consciência desses trabalhadores. Quanto mais consciente de sua condição pessoal e social, de seu papel de trabalhador inserido num contexto social e de cidadão num sistema político, mais apto estará para eleger instrumentos de trabalho que visem o resgate dessa mesma condição de sujeito-cidadão às pessoas com transtornos mentais. Quanto menos consciente de sua condição de sujeito social e de cidadão, mais aderido estará ao antigo modelo médico-disciplinar e mais subordinada e coadjuvante será a sua atuação nas intervenções desse modelo.
FONTE: www.psiqweb.com.br . Acessado em 10 de março de 2011.
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