A cidade líbia de Misrata, palco dos conflitos mais
sangrentos durante a revolução que depôs o coronel Muamar Khadafi no ano
passado, não está dando conta de atender e tratar os vários
ex-combatentes que sofrem distúrbios psiquiátricos por causa de traumas
deixados pelo conflito.
A batalha de Misrata ficou conhecida como o
"Stalingrado da Líbia", em alusão à batalha de Stalingrado, na Rússia,
uma das mais sangrentas da Segunda Guerra e da história.
Nos três meses de combates na cidade, cerca de 2 mil moradores morreram e 14 mil ficaram feridos.
Finda a revolução, muitos homens estão tendo
dificuldade para lidar com transtornos psicológicos e médicos dizem que
há uma desesperadora carência de profissionais qualificados ligados à
saúde mental para tratá-los.
A doença mental ainda é um tabu na maior parte
do mundo árabe e, na cidade conservadora de Misrata, os jovens têm
dificuldade em encontrar ajuda nesta área.
Um grande número de jovens vem sofrendo de problemas como psicose, depressão aguda e estresse pós-traumático.
Alguns jovens que viveram o conflito
compartilham um profundo sentimento de depressão e desilusão, com a
falta de mudança que vivem na Líbia pós-Khadafi.
Há mais de um ano, o médico Khaled al-Madani,
chefe do departamento de Psicologia da Universidade de Misrata, vem
tentando criar serviços adequados de saúde mental.
Estresse pós-traumático
Uma pesquisa recente realizada por al Madani com
200 pessoas que perderam suas casas no conflito mostra que 17% delas
estão sofrendo de estresse pós-traumático.
"Este é um conceito novo na Líbia, mas, no
momento, temos um elevado número de pessoas que sofrem de transtorno de
estresse pós-traumático", diz.
Um ex-combatente foi até o Wazrak Al Medical
Centre, em Misrata, para uma consulta com o Dr. Isa Asalini, o único
psiquiatra, que acabou de chegar de Trípoli.
Ahmed (nome fictício), que antes da revolução estudava Direito e trabalhava meio expediente, agora sofre de depressão aguda.
Essa foi a primeira vez em que ele foi procurar a
ajuda de um especialista. Segundo o médico, ele está apático e seus
olhos transmitem um desespero esmagador.
"Eu perdi muitos amigos durante o conflito. Muitos morreram, foram amputados ou ficaram cegos", contou o rapaz.
Em pouco tempo de conversa, Ahmed mostra profunda desilusão sobre a revolução e suas conquistas.
"Em geral, me sinto sempre triste e tenho
dificuldade para dormir. Não é como antes, me sinto isolado da
comunidade", disse o rapaz.
"Tenho a impressão de que as pessoas que
morreram no conflito morreram por nada. Com certeza, de acordo com a
nossa religião, elas são mártires. No entanto, particularmente, acho que
elas morreram por nada e isso me causa depressão. Acho que minha vida
era melhor antes da revolução", disse.
Antes da guerra, Ahmed trabalhava com comércio
exterior. Hoje, ele diz que não consegue nem mesmo um visto para deixar a
Líbia e não vê nenhum futuro. Nos momentos de maior depressão, chegou a
pensar em suicídio, o que é ferozmente condenado pelo Islã.
"Antes da guerra, eu tinha ambições e agora não
as tenho mais. Nada é estável nesse país. Sinto que o país ainda vai
demorar muito para se estabilizar e já pensei em me matar para me livrar
desse sentimento", contou.
Uma revolução como a de Misrata, que desenvolveu
um poderoso culto ao heroísmo e à vitimização, depois das brutalidades
vividas, pode trazer perigos para a nova Líbia.
"A pergunta que sempre vem à minha cabeça é: o
que nós ganhamos com isso? Não ganhamos nada, mas não posso dizer isso
em público, porque alguns grupos podem prejudicar a mim ou a minha
família ou até mesmo me prender".
Jovens
De acordo com o Dr. al-Madani, os jovens
representam o maior grupo com transtornos mentais. No entanto, algumas
mulheres também foram procurar ajuda pelos mesmos problemas.
Uma de suas pacientes sofre de flashbacks
repetidos, em que acha que será morta ou estuprada. "Ela já tentou se
matar três vezes", disse o médico.
Segundo moradores da cidade, soldados
pró-Khadafi da cidade vizinha de Tawergha estupraram mulheres e
cometeram outras atrocidades, como a castração de homens, durante os
combates.
Os moradores de Tawergha não foram autorizados a
voltar para sua cidade após o conflito e agora estão espalhados em
acampamentos improvisados por todo o país.
"A guerra pode ter acabado, mas casos como o de
Ahmed são muito comuns em Misrata", disse o médico. "Eles estão
decepcionados e precisam de médicos para ajudá-los, mas nós não temos.
Eles achavam que, mudando o regime de Khadafi, tudo ficaria bem.
Depois de quase dois anos de começar a lutar no conflito, Ahmed inicia agora uma nova e longa luta para curar sua depressão.
"Eu lutei muito na revolução. Perdi meu emprego,
meus amigos e agora não me resta nada. Meus sonhos estão completamente
quebrados".
FONTE: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/12/121217_combatentes_libia_traumas_lgb.shtml
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