BRUNO PAES MANSO - O Estado de S.Paulo
O sol começava a sair de trás das nuvens, por volta das 10h de anteontem,
quando o psiquiatra Flavio Falcone, de 33 anos, formado pela Universidade de São
Paulo (USP), abriu a porta do banheiro da Unidade De Braços Abertos, na Rua
Helvetia, no coração da Cracolândia, centro de São Paulo. Com um nariz de bola
vermelha e o rosto maquiado, usando uma cartola branca, terno de tecido grosso e
uma gravata feita com gaze, ele já havia incorporado o palhaço Fanfarrone.
Pela décima vez nos últimos dois meses, Falcone repetia o ritual das últimas sextas-feiras. Fantasiado, aborda os usuários de crack nas ruas lotadas da Cracolândia para ganhar a confiança deles e convencê-los a iniciar um tratamento que possa livrá-los de uma das drogas mais consumidas no País. Um em cada três (35%) consumidores de drogas ilícitas nas capitais do País usa crack, conforme pesquisa inédita da Fundação Oswaldo Cruz, divulgada na quinta-feira.
"O palhaço ajuda a estabelecer uma relação horizontal, de igual para igual, com o povo daqui. De médico, imediatamente se cria uma hierarquia que eu prefiro desconstruir", diz. Depois dos primeiros passeios, um pandeiro também passou a fazer parte dos acessórios da peregrinação. Quando os usuários viam o palhaço, muitos o rodeavam e começavam a cantar com ele.
Logo nos primeiros passos, Fanfarrone é abordado por uma mulher de cerca de 30 anos, magra, cabelos castanhos, envelhecida pela droga, que vem conversar sobre astrologia. Ela pergunta o signo do palhaço, que responde ser de escorpião. A moça conta a história do marido do mesmo signo, que consome crack com ela. "Eu fumo para ficar na brisa, para ouvir música, para fazer amor. Ele fuma e fica violento, fala bobagens, me bate. Quando escorpião dá para ser ruim, sai de baixo", diz a moça.
Uma liderança da cena local começa a acompanhar Fanfarrone, depois de comunicada de que haveria fotos e que o repórter iria junto. Pardal, de 50 anos, foi com um chapéu verde-amarelo, segurando um acessório de penas coloridas. Usa óculos sem lentes para "passar uma imagem de respeito", que ele tira durante os bate-bocas com outros frequentadores.
Pardal estava agitado na manhã de sexta, sob o efeito da pedra. Contou que a Escola de Samba Tom Maior havia sido criada em sua casa, na zona sul, e depois se emocionou ao falar do filho que foi preso aos 15 anos e só agora havia saído da prisão. Assumiu com o palhaço o compromisso de participar de um grupo de música para o bairro, projeto ainda a ser apresentado ao poder público.
Fanfarrone segue pela Helvetia em direção à Rua Dino Bueno, onde fica "o fluxo", termo usado para definir o movimento de venda e consumo intenso da pedra. Ganha um boneco de pelúcia de presente de uma moça, que pede que ele guarde o bichinho com cuidado. Metros adiante, Fanfarrone perde o boneco, levado de seu bolso por um homem.
A rua está agitada às 10h30. Barraquinhas de roupas velhas ficam na calçada, num comércio de objetos sem valor para fazer dinheiro para manter o consumo da pedra. Em outro, são vendidos carrinhos de plástico quebrados e muitos restos de equipamentos eletrônicos. Um jovem branco, de cabelos claros e compridos, tenta vender uma bela jaqueta preta, no meio do fluxo, para obter recursos e comprar mais pedra.
Aos 14 anos Falcone sonhou que estava tratando de dependentes químicos. Foi quando decidiu ser psiquiatra. Sempre teve facilidade com os estudos e ingressou na USP. Junto com a Medicina, passou a fazer aulas de palhaço e conseguiu se livrar da depressão que o perseguia. "O palhaço lida com as sombras. Ele revela o lado ridículo de situações que, às vezes, levamos muito a sério. Eu sempre fui uma pessoa tímida. Passei a rir de mim mesmo, o que foi mais eficiente do que qualquer terapia. Parece que, hoje, renasci e vivo em outra encarnação", diz.
A sombra dos frequentadores da Cracolândia, para o palhaço, é o potencial muitas vezes desperdiçado daquelas pessoas. Fanfarrone continua andando no meio da confusão, com gente de olhos arregalados por todos os lados, cachimbos de aço sendo acesos, discussões e dedos em riste, quando, de repente, um cego de roupa social aparece, tentando passar no meio do fluxo com a ajuda da bengala. Tudo pode parecer muito triste, mas Fanfarrone acredita no poder terapêutico de transformar em riso a miséria humana.
Nos primeiros dois meses de atividade, ele calcula ter conseguido "construir vínculos" com 30 pessoas. Um deles era HIV positivo. Depois de saber que tinha a doença, decidiu "morrer na Cracolândia". Fanfarrone disse que hoje pessoas com aids podem sobreviver por anos, desde que medicadas. Ao saber disso, o jovem começou a se tratar. Mas permanece na Cracolândia.
Fanfarrone evita arriscar um palpite sobre quanto tempo a região ainda vai conviver com a cidade. Mas arrisca uma definição sobre o local: "a Cracolândia é a sombra da cidade de São Paulo".
FONTE:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,de-palhaco-medico-combate-o-crack,1077416,0.htm
Felipe Rau/Estadão
Médico se aproxima dos
usuários
Pela décima vez nos últimos dois meses, Falcone repetia o ritual das últimas sextas-feiras. Fantasiado, aborda os usuários de crack nas ruas lotadas da Cracolândia para ganhar a confiança deles e convencê-los a iniciar um tratamento que possa livrá-los de uma das drogas mais consumidas no País. Um em cada três (35%) consumidores de drogas ilícitas nas capitais do País usa crack, conforme pesquisa inédita da Fundação Oswaldo Cruz, divulgada na quinta-feira.
"O palhaço ajuda a estabelecer uma relação horizontal, de igual para igual, com o povo daqui. De médico, imediatamente se cria uma hierarquia que eu prefiro desconstruir", diz. Depois dos primeiros passeios, um pandeiro também passou a fazer parte dos acessórios da peregrinação. Quando os usuários viam o palhaço, muitos o rodeavam e começavam a cantar com ele.
Logo nos primeiros passos, Fanfarrone é abordado por uma mulher de cerca de 30 anos, magra, cabelos castanhos, envelhecida pela droga, que vem conversar sobre astrologia. Ela pergunta o signo do palhaço, que responde ser de escorpião. A moça conta a história do marido do mesmo signo, que consome crack com ela. "Eu fumo para ficar na brisa, para ouvir música, para fazer amor. Ele fuma e fica violento, fala bobagens, me bate. Quando escorpião dá para ser ruim, sai de baixo", diz a moça.
Uma liderança da cena local começa a acompanhar Fanfarrone, depois de comunicada de que haveria fotos e que o repórter iria junto. Pardal, de 50 anos, foi com um chapéu verde-amarelo, segurando um acessório de penas coloridas. Usa óculos sem lentes para "passar uma imagem de respeito", que ele tira durante os bate-bocas com outros frequentadores.
Pardal estava agitado na manhã de sexta, sob o efeito da pedra. Contou que a Escola de Samba Tom Maior havia sido criada em sua casa, na zona sul, e depois se emocionou ao falar do filho que foi preso aos 15 anos e só agora havia saído da prisão. Assumiu com o palhaço o compromisso de participar de um grupo de música para o bairro, projeto ainda a ser apresentado ao poder público.
Fanfarrone segue pela Helvetia em direção à Rua Dino Bueno, onde fica "o fluxo", termo usado para definir o movimento de venda e consumo intenso da pedra. Ganha um boneco de pelúcia de presente de uma moça, que pede que ele guarde o bichinho com cuidado. Metros adiante, Fanfarrone perde o boneco, levado de seu bolso por um homem.
A rua está agitada às 10h30. Barraquinhas de roupas velhas ficam na calçada, num comércio de objetos sem valor para fazer dinheiro para manter o consumo da pedra. Em outro, são vendidos carrinhos de plástico quebrados e muitos restos de equipamentos eletrônicos. Um jovem branco, de cabelos claros e compridos, tenta vender uma bela jaqueta preta, no meio do fluxo, para obter recursos e comprar mais pedra.
Aos 14 anos Falcone sonhou que estava tratando de dependentes químicos. Foi quando decidiu ser psiquiatra. Sempre teve facilidade com os estudos e ingressou na USP. Junto com a Medicina, passou a fazer aulas de palhaço e conseguiu se livrar da depressão que o perseguia. "O palhaço lida com as sombras. Ele revela o lado ridículo de situações que, às vezes, levamos muito a sério. Eu sempre fui uma pessoa tímida. Passei a rir de mim mesmo, o que foi mais eficiente do que qualquer terapia. Parece que, hoje, renasci e vivo em outra encarnação", diz.
A sombra dos frequentadores da Cracolândia, para o palhaço, é o potencial muitas vezes desperdiçado daquelas pessoas. Fanfarrone continua andando no meio da confusão, com gente de olhos arregalados por todos os lados, cachimbos de aço sendo acesos, discussões e dedos em riste, quando, de repente, um cego de roupa social aparece, tentando passar no meio do fluxo com a ajuda da bengala. Tudo pode parecer muito triste, mas Fanfarrone acredita no poder terapêutico de transformar em riso a miséria humana.
Nos primeiros dois meses de atividade, ele calcula ter conseguido "construir vínculos" com 30 pessoas. Um deles era HIV positivo. Depois de saber que tinha a doença, decidiu "morrer na Cracolândia". Fanfarrone disse que hoje pessoas com aids podem sobreviver por anos, desde que medicadas. Ao saber disso, o jovem começou a se tratar. Mas permanece na Cracolândia.
Fanfarrone evita arriscar um palpite sobre quanto tempo a região ainda vai conviver com a cidade. Mas arrisca uma definição sobre o local: "a Cracolândia é a sombra da cidade de São Paulo".
FONTE:http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,de-palhaco-medico-combate-o-crack,1077416,0.htm
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