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quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Por que ainda tem tanta gente em manicômios judiciários 2 anos após Justiça mandar fechar todos.


  Rute Pina

  • Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
  • Twitter,

    Manoel, de 54 anos, comemora poder usar tênis com cadarços pela primeira vez em mais de uma década.

    Internado por 14 anos e 7 meses, ele deixou as restrições do Complexo Médico Penal (CMP) do Paraná, em Pinhais, para viver em uma residência terapêutica em Curitiba.

    Manoel, que teve o nome real preservado assim como outros internos citados na reportagem, foi diagnosticado com transtorno bipolar aos 19 anos. Em 2009, ele recebeu uma medida de segurança após tentativa de homicídio de um familiar.

    Desde 2016, ele já tinha um laudo psiquiátrico que indicava que poderia fazer acompanhamento sem estar recluso, mas só foi transferido neste ano.

    Ele ficou oito anos em "condição asilar" — como se chama quando alguém permanece em uma instituição psiquiátrica mesmo após ter indicação de alta — porque perdeu o contato com a família e não tinha para onde ir.

    A norma do CNJ busca se alinhar à Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, que mudou o modelo de assistência a pessoas com transtornos psiquiátricos no Brasil.

    "Ou seja, o Judiciário está tentando agora se adequar a uma lei que já tem duas décadas", explica a psiquiatra forense Emi Mori.

    Essa foi uma conquista da mobilização que busca há algumas décadas acabar com a internação em manicômios.

    O movimento antimanicomial defende direitos de pessoas em sofrimento mental e advoga pelo fim da lógica de manicômios, com internações prolongadas e privação da liberdade de pacientes, nos cuidados em saúde.

    Hoje, pessoas nesta situação que cometem crimes e são presas por isso, se são consideradas inimputável pela Justiça — ou seja, incapazes de responder por seus atos — recebem, em vez de uma pena, uma medida de segurança.

    Ou seja, são internadas nos hospitais de custódia, para receber tratamento.

    A decisão do CNJ determina que estas pessoas devem passar a ser atendidas em unidades da rede de saúde pública em vez de manicômios, ressalta Mori.

    A mudança busca reduzir internações prolongadas e incentivar o acompanhamento ambulatorial sempre que possível.

    Mas o fim dos manicômios judiciários no Brasil ainda está longe de ser atingido, passados quase dois anos da decisão na Justiça.

     CNJ determinou inicialmente um prazo de um ano para o fechamento de unidades penais com características hospitalares.

    Segundo dados do CNJ, só quatro Estados cumpriram a determinação até agora — Ceará, Goiás, Mato Grosso e Piauí.

    Alguns Estados, como São Paulo, onde estão mais da metade de todos os internos, pediram o adiamento do prazo do CNJ.

    Um dos entraves para o fim dos manicômios judiciários é o impasse sobre quem vai assumir o cuidado destes internos, que perderam muitas vezes o vínculo com qualquer pessoa do lado de fora.

    O embate foi capturado pela polarização política e acabou indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF).

    Quem defende o fim dos manicômios diz que o tratamento oferecido nestes lugares não ajudam os pacientes e que eles vão ser melhor atendidos em unidades especializadas da rede de saúde pública.

    Aqueles que são contra avaliam que o Sistema Único de Saúde (SUS) não vai dar conta de atender essa demanda.

    Críticos da medida também afirmam que, com o fim dos manicômios, os internos não vão receber o tratamento que precisam e que "criminosos perigosos" vão ser colocados nas ruas, o que colocaria outras pessoas em risco.

    'Na prática, pouca coisa mudou'

    Hoje, ainda existem 28 manicômios judiciários em funcionamento no país.

    O Paraná, por exemplo, onde Manoel passou mais de um quarto da vida internado em um local assim, tem 150 pessoas no Complexo Médico Penal, no momento.

    Este é o único hospital de custódia do Estado, que é o segundo com maior número de pessoas que cumprem medida de segurança no país.

    Pelo menos 16, já receberam alta, mas continuam no manicômio. A Defensoria já protocolou por este motivo 25 pedidos de indenização contra o Paraná, que foi condenado cinco vezes — o caso de Manoel foi um deles.

    "Essas pessoas continuam detidas por falta de acolhimento adequado fora do sistema prisional", relata a psicóloga Nayanne Costa Freire, que participa de um programa da Defensoria Pública para reintegração de pessoas em condição asilar.

    Freire aponta problemas graves na assistência dentro do CMP do Paraná.

    "As pessoas ficam isoladas, sem acesso a familiares ou a tratamentos adequados. É um sistema insalubre", diz Freire.

    Desde 2020, o programa da Defensoria retirou 97 pessoas do Complexo Médico Penal do Paraná.

    "Conseguimos localizar parentes de várias pessoas", explica Freire.

    "Para aquelas sem acolhimento familiar, buscamos alternativas em instituições de longa permanência, residências inclusivas ou serviços de albergagem."

    A psicóloga relata que os pacientes recebem um tratamento padrão que desconsidera suas necessidades particulares.

    "É comum o uso de medicamentos como o haloperidol, apelidado de 'injeção de entorta' pelos internos. Esse remédio causa apatia severa, além de efeitos colaterais debilitantes", diz Freire.

    Segundo a psicóloga, há ainda relatos de uso sistemático e abusivo da prometazina, um antialérgico com propriedades sedativas.

    "É uma contenção química para facilitar o controle dos internos, em vez de oferecer um tratamento digno", argumenta Freire.

    Apesar da resolução de fechar os manicômios judiciários, Freire diz que o sistema continua recebendo pacientes: "Na prática, pouca coisa mudou".

    Maurício Ferracini, diretor-adjunto da Polícia Penal do Estado, que responde pelo CMP, nega que o tratamento dado aos internos seja inadequado e diz que as instalações do complexo passaram por reformas.

    Ferracini também nega que novos casos estejam sendo encaminhados à unidade.

    Segundo ele, isso não ocorre desde 2023. Os réus que são alvo de medidas de segurança por questões psiquiátricas são direcionados diretamente às equipes da rede pública de saúde.

    Segundo ele, não houve impacto negativo na segurança pública desde a implementação da medida.

    "Esses casos são questão de saúde pública e não de segurança. Quando encaminhados para a equipe multidisciplinar, temos tido respostas adequadas", afirma Ferracini.

    Falta de psiquiatras e avaliações atrasadas em SP

    Com 898 pessoas em hospitais de custódia, São Paulo tem o maior número de internados. Isso representa 51,3% do total no país.

    O Estado também é o que tem a maior população encarcerada no país, com 200 mil presos.

    São Paulo tem três hospitais de custódia, dois no município de Franco da Rocha, na região metropolitana; e um no interior do Estado, na cidade de Taubaté, para onde vão os casos considerados mais graves.

    A Defensoria Pública do Estado realizou, em 2023, inspeções em dois deles, e os relatórios também mostram uma série de problemas nas instituições.

    A unidade de Franco da Rocha I, por exemplo, tinha apenas um psiquiatra trabalhando na unidade quando, na verdade, deveriam ter cerca de 30 profissionais se revezando na escala.

    A falta de profissionais, pontua o relatório, causa atrasos nas avaliações de "cessação de periculosidade", que são os laudos médicos que atestam que a pessoa não representa mais riscos à sociedade.

    Além disso, sem profissionais de saúde nas unidades, os internos de Franco da Rocha são levados para Taubaté, a mais de 170 quilômetros de distância, para a realização de perícias.

    "São 'hospitais' entre muitas aspas. Eles têm o nome de hospitais, mas estão com equipes absolutamente defasadas", diz a defensora pública Camila Tourinho.

    "Eles funcionam da porta para dentro, sem fazer nenhuma interlocução com o sistema de saúde, quem de fato teria que se responsabilizar pelos cuidados com essas pessoas."

    Tourinho diz que a internação nos manicômios dificultam a reintegração social dos pacientes.

    "Eles não conseguem sair porque seus vínculos foram absolutamente rompidos. Não têm família ou um equipamento municipal que possa recebê-los", diz a defensora.

    Os internos dependem do laudo psiquiátrico para atestar que eles não oferecem mais perigo.

    "Mas, como esses médicos são escassos, as avaliações demoram", diz Tourinho.

    "Existem casos de pacientes que cumprem mais tempo em hospitais de custódia do que a pena do crime cometido."

    Este é o caso de Rafael, que foi preso pelo furto de um botijão de gás em outubro de 2022.

    Ele ficou na Penitenciária III de Franco da Rocha até maio de 2024 para aguardar a realização de exame psiquiátrico.

    A pena mínima do crime que ele cometeu é de um ano. Ele foi solto pouco mais de um ano e meio depois, com a concessão de um habeas corpus pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

    A Secretaria da Administração Penitenciária afirmou em nota que não há no Estado avaliações em atraso.

    Atualmente, existem oito psiquiatras no quadro médico dos hospitais, que seriam suficientes para atender todas as pessoas internadas, segundo a nota.

    A pasta afirmou ainda que a unidade de Franco da Rocha I oferece semanalmente a visita presencial, visita virtual e a correspondência eletrônica para fortalecer o vínculo familiar e o apoio emocional para os pacientes.

    Já na segunda unidade, focada na desinternação, os pacientes têm acesso livre ao telefone público e chamada de vídeo com familiares, afirmou a Secretaria.

    Impasse no STF

    A resolução do CNJ que determina o fim dos manicômios judiciários foi questionada no STF pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e por dois partidos, o Podemos e o União Brasil.

    Em abril, o senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) pediu uma audiência pública sobre o tema. Na época, ele disse ser preciso buscar saída que não traga riscos à sociedade.

    "Li uma notícia de jornal recentemente falando da preocupação com alguns internados no Rio de Janeiro", disse Moro.

    "Entre eles, havia um indivíduo que era responsável por múltiplos assassinatos de crianças e adolescentes", prosseguiu.

    "Ao se colocar um indivíduo desse num hospital normal, como vai ser? Vai ficar com vigilância perpétua, com policiais ali presentes? Vai ficar acorrentado na cama?"

    "Imagina que, de uma hora para outra, pessoas sob tratamento são colocadas em liberdade?", questiona o promotor.

    "Há de se ter critérios, observar a individualização da pena, a gravidade do delito, o tipo de patologia que elas têm."

    Existem pessoas que, do ponto de vista clínico, precisam ter um tratamento continuado, argumenta o promotor.

    "O sistema de saúde geral não tem condições de absolver todas essas pessoas sujeitas a medida de segurança por praticarem crimes graves e cujas patologias elas demandam muito tempo de tratamento."

    STF começou a julgar a ação em outubro no plenário, mas suspendeu o andamento após as sustentações orais, antes dos votos dos ministros.

    O relator, o ministro Edson Fachin, será o primeiro a votar. Mas ainda não há data prevista para a retomada do julgamento.

    Antônio Geraldo da Silva, presidente da ABP, critica a resolução por, ao seu ver, não ter sido elaborada sem a consulta de médicos psiquiatras ou entidades representativas da área, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a própria associação.

    "Como você quer falar de hospital psiquiátrico e não chama as instituições que cuidam dessa área? É como discutir infarto agudo do miocárdio sem ouvir cardiologistas", critica Silva.

    "Negar internação é negar tratamento. Estamos tratando de pessoas que podem ser perigosas e precisam de cuidados adequados para cessar a periculosidade e conviver em sociedade."

    O psiquiatra critica a mobilização por trás do avanço da política antimanicomial por, em sua avaliação, minimizar a gravidade das doenças mentais e ignorar a necessidade de internação em casos específicos.

    "A luta antimanicomial nega a existência da doença mental e coloca em risco a vida das próprias pessoas e de outros", afirma Silva.

    "Isso é desumano e baseado em ideologia, não em ciência."

    A psiquiatra forense Emi Mori, no entanto, ressalta que não há doença psiquiátrica que exija, de antemão, períodos tão longos de internação.

    "O tempo depende da evolução do tratamento, não de prazos fixos estabelecidos pela lei", diz Mori.

    "Nem todo paciente com doença mental que comete um crime é intrinsecamente perigoso. O conceito de periculosidade jurídica nem sempre está alinhado com a realidade clínica."

    Ela acredita que a polarização política prejudica o debate sobre a questão, que tem apelo com quem defende medidas mais duras de segurança pública.

    "Propostas extremas sugerem soluções simplistas para o problema, que é bastante complexo. E quando entidades médicas endossam a ideia de que estamos 'soltando criminosos', isso é alarmista e superficial", diz Mori.

    "As unidades carecem de estrutura terapêutica adequada. Não há equipes multiprofissionais completas, como psicólogos e terapeutas ocupacionais."

    A psiquiatra defende que o modelo de assistência a pessoas com transtornos mentais que cometem crimes precisa ser revisto.

    "Hoje, o foco está mais na contenção do que no tratamento. Os hospitais de custódia estão em um limbo entre o cumprimento de pena e o tratamento médico", diz.

    "É preciso criar espaços que ofereçam assistência multiprofissional e um ambiente propício à recuperação, mesmo nos casos em que a internação seja indispensável."

    Mas ela pondera que o fim dos manicômios deve ser acompanhado de alternativas eficazes, com suporte psicológico, social e terapêutico.

    "Sem isso, a reforma se torna uma transferência de problema, não uma solução."

    Para a transição ser efetiva, o desembargador Gilberto Leme afirma que vai ser necessário criar uma estrutura de saúde pública capaz de atender a nova demanda.

    Segundo Leme, há a possibilidade de reformar os hospitais de custódia para transformá-los em centros de referência em saúde mental.

    Apesar das dificuldades, ele nota que a resolução do CNJ já começou a impactar em decisões judiciais. O desembargador avalia que o Judiciário já adota uma postura mais criteriosa ao determinar internações.

    "Notamos que os juízes têm sido mais parcimoniosos ao aplicar medidas de segurança", afirma Leme.

    "É uma mudança que exige tempo, investimento e, acima de tudo, diálogo entre Justiça e Saúde para podermos oferecer tratamento digno e eficaz às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei."

     

    sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

    O curioso transtorno que faz homens acreditarem que perderam o pênis


     Zaria Gorvett

    Role, BBC Future

    "NÃO TENHA MEDO DO KORO", dizia a manchete do jornal Straits Times em 7 de novembro de 1967. Nos dias anteriores, um fenômeno peculiar havia se espalhado por Singapura. Milhares de homens haviam se convencido espontaneamente de que seus pênis estavam encolhendo — e que isso acabaria matando-os.

    A histeria em massa tomou conta rapidamente. Os homens tentavam desesperadamente segurar seus órgãos genitais, usando tudo o que tinham à mão: elásticos, prendedores de roupa, barbante. Médicos locais inescrupulosos lucraram, recomendando várias injeções e remédios tradicionais.

    Corria o boato de que a súbita retração do pênis era causada por algo que os homens haviam comido. Os moradores locais desconfiavam da carne suína, especificamente de porcos que haviam sido vacinados como parte de um programa que o governo havia imposto às fazendas de Singapura. As vendas de carne suína despencaram rapidamente.

    Embora as autoridades de saúde pública tenham se esforçado para conter o surto de histeria, explicando que aquilo era causado apenas pelo "medo psicológico", não funcionou. No fim das contas, mais de 500 pessoas procuraram tratamento em hospitais públicos.

    No Sudeste Asiático e na China, é comum o suficiente para ter até um nome: "koro", que remete possivelmente — e de forma bastante visual — à palavra javanesa para tartaruga, referindo-se à sua aparência quando retrai a cabeça para dentro do casco.

    O koro tem uma história que remonta a milhares de anos, mas o surto mais recente ocorreu em 2015, no leste da Índia. No total, 57 pessoas foram afetadas, incluindo oito mulheres, para quem a síndrome tende a se manifestar como um medo de que seus mamilos estejam se retraindo para dentro do corpo.

    O koro é considerado uma síndrome ligada à cultura — um transtorno mental que só existe em certas sociedades. Durante décadas, distúrbios "intraduzíveis" como este foram estudados como meras curiosidades científicas, que existiam em partes do mundo onde as pessoas aparentemente não tinham conhecimento.

    Os transtornos mentais ocidentais, por outro lado, eram vistos como universais — e você poderia garantir que todo problema "genuíno" seria encontrado nas páginas sagradas da bíblia psiquiátrica americana, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (mais comumente conhecido como DSM, na sigla em inglês). Mas hoje os cientistas estão percebendo cada vez mais que este não é o caso.

    Na Coreia do Sul, por sua vez, existe o hwa-byung ("vírus da raiva", em tradução livre) —, que é causado ao reprimir sentimentos sobre algo que você considera injusto, até que você sucumba a alguns sintomas físicos alarmantes, como uma sensação de queimação no corpo.

    Lidar com membros da família irritantes é um grande fator de risco — é comum durante divórcios e conflitos com parentes.

    Embora, para os não iniciados, esses transtornos mentais possam parecer excêntricos ou até mesmo inventados, na verdade, eles são problemas sérios e legítimos de saúde mental que atingem um grande número de pessoas.

    Estima-se que o hwa-byung afete cerca de 10 mil pessoas na Coreia do Sul todos os anos — em sua maioria, mulheres casadas mais velhas —, e uma pesquisa mostrou que ele deixa uma marca mensurável no cérebro.

    Em 2009, exames de imagem revelaram que quem sofre deste distúrbio apresentava menor atividade em uma área do cérebro conhecida por estar envolvida em tarefas relacionadas à emoção e controle de impulsos. Isso faz sentido, já que o hwa-byung é um transtorno de raiva.

    As consequências das síndromes vinculadas à cultura podem ser devastadoras. Os ataques de koro podem ser tão convincentes que os homens causam graves danos aos seus órgãos genitais, na tentativa de impedi-los de retrair.

    As pessoas que sofrem de reflechi twòp têm oito vezes mais chance de ter pensamentos suicidas, enquanto o hwa-byung tem sido associado a sofrimento emocional, isolamento social, desmoralização e depressão, dor física, baixa autoestima e infelicidade.

    Curiosamente, algumas doenças intraduzíveis desapareceram recentemente, enquanto outras estão se espalhando para novas partes do mundo.

    Mas, afinal, de onde vêm essas doenças, e o que determina onde elas são encontradas? A busca por respostas tem fascinado antropólogos e psiquiatras há décadas — e agora suas descobertas estão norteando nossa compreensão da própria origem dos transtornos mentais.

    Exportação do Ocidente

    O prêmio de doença vinculada à cultura com a história mais surpreendente vai, sem dúvida, para a "neurastenia" (também conhecida como shenjing shuairuo). Embora ocorra principalmente na China e no Sudeste Asiático atualmente, trata-se, na verdade, de um transtorno colonial do século 19.

    A neurastenia foi popularizada pelo neurologista americano George Miller Beard, que a descreveu como uma "exaustão do sistema nervoso". Na época, a Revolução Industrial estava gerando uma grande reviravolta na vida cotidiana, e ele acreditava que a neurastenia — uma síndrome caracterizada por dor de cabeça, fadiga e ansiedade, entre outras coisas — era resultado disso.

    Romancistas famosos como Marcel Proust foram diagnosticados, o transtorno se tornou bastante popular", diz Kevin Aho, filósofo da Universidade da Costa do Golfo da Flórida, nos EUA, que estudou a história do transtorno.

    De acordo com uma pesquisa realizada em 1913, a neurastenia foi o diagnóstico mais prevalente entre os colonizadores brancos na Índia, Sri Lanka (então Ceilão), China e Japão.

    Com o passar dos anos, a neurastenia perdeu gradualmente seu apelo no Ocidente, à medida que foi associada a problemas psiquiátricos mais graves. Agora foi completamente esquecida.

    Em outros lugares, porém, aconteceu o contrário: foi usada como um diagnóstico que não trazia o estigma do transtorno mental — e continua em uso até hoje.

    Em algumas partes da Ásia, é mais provável que as pessoas digam que têm neurastenia do que depressão. Um estudo de 2018 realizado com uma amostra aleatória de adultos de Guangzhou, na China, mostrou que 15,4% se identificaram como tendo neurastenia, contra 5,3% que disseram ter depressão.

    "Quando entrevistei pacientes pela primeira vez em um hospital psiquiátrico em Ho Chi Minh, no Vietnã, em 2008, quase todos disseram que tinham neurastenia", conta Allen Tran, antropólogo psicólogo da Universidade Bucknell, na Pensilvânia, nos EUA.

    "Então, quando fiz uma pesquisa de acompanhamento dez anos depois, acho que apenas uma pessoa da minha amostra disse que a tinha (neurastenia)."

    O que está acontecendo?

    Normas culturais

    Há dois cenários possíveis acontecendo aqui. Em primeiro lugar, existe a ideia de que toda a humanidade é suscetível à mesma variedade limitada de transtornos mentais — todos nós nos sentimos ansiosos e deprimidos, por exemplo, mas a maneira como falamos sobre essas coisas varia dependendo de quando e onde você vive.

    O fato de que as doenças vinculadas à cultura podem ser adquiridas e desaparecer dentro de uma única comunidade, e com tanta rapidez, é uma pista importante.

    Isso sugere que elas não são impulsionadas, por exemplo, por fatores genéticos, uma vez que este tipo de mudança geralmente leva centenas ou milhares de anos, em vez de dezenas.

    Em vez disso, a rápida extinção da neurastenia no Vietnã pode ser atribuída à crescente popularidade do conceito de ansiedade, que foi importado do exterior.

    É possível que a incidência real de transtornos mentais tenha sido a mesma durante todo esse tempo, mas, conceitualmente, uma foi substituída pela outra, explica Tran.

    No Reino Unido, a ultrapassada "histeria" — que acreditava-se afetar principalmente as mulheres e causar desmaios, explosões emocionais e nervosismo — desapareceu do imaginário popular no início do século 20.

    Mas Shorter sugere que ela não desapareceu de fato. Em vez disso, o conjunto de sintomas que procuramos evoluiu. Atualmente, o mesmo fenômeno mental se esconde atrás de outros diagnósticos, como a depressão.

    Isso se encaixa em outro conceito que vem ganhando popularidade, "expressões idiomáticas de angústia", que sugere que cada cultura tem certas formas aceitáveis e estabelecidas de expressar angústia emocional em um determinado momento.

    Em uma sociedade, você pode exagerar na bebida, enquanto em outras pode dizer que é vítima de bruxaria ou diagnosticar a si mesmo com transtornos como koro ou depressão.

    Por exemplo, no mundo islâmico, acredita-se amplamente que é possível ser possuído por jinns, ou espíritos malignos. Eles podem ser bons, maus ou neutros, mas geralmente são culpados pelo comportamento errático. O conceito é tão popular que está até no livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão.

    "Muitos dos meus pacientes têm esta crença muito forte", diz Shahzada Nawaz, psiquiatra do North Manchester General Hospital, no Reino Unido.

    Nawaz explica que a capacidade de invocar espíritos é particularmente útil nas culturas islâmicas, devido ao estigma que tende a acompanhar os transtornos mentais ocidentais.

    Um estudo com 30 pacientes de Bangladesh que frequentavam um serviço de saúde mental em um bairro do leste de Londres mostrou que, embora eles tivessem sido diagnosticados com uma variedade de problemas, como esquizofrenia e transtorno bipolar, seus familiares geralmente achavam que se devia à possessão por jinns.

    Nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Europa, pelo menos no século 21, a tendência é que a angústia ocorra na mente, com a predominância de sintomas como tristeza, raiva ou ansiedade.

    Mas isso, na verdade, é muito estranho. Em muitas partes do mundo, em países tão diversos quanto China, Etiópia e Chile, ela se manifesta fisicamente.

    Por exemplo, a edição mais atualizada do DSM descreve um ataque de pânico como "uma onda abrupta de medo intenso ou desconforto intenso".

    No entanto, nos refugiados cambojanos, os sintomas tendem a se concentrar no pescoço. Muitos transtornos mentais não ocidentais, como o koro e o hwa-byung, se encaixam neste padrão de percepção de sintomas físicos.

    Por outro lado, os transtornos mentais que envolvem a percepção da dor são raros no mundo ocidental e calorosamente debatidos. Alguns cientistas acreditam que a síndrome da fadiga crônica e a fibromialgia se enquadram nesta categoria, embora isso seja controverso.

    Na verdade, sabe-se há anos que nossas crenças podem ter um efeito poderoso sobre a maneira como nos sentimos — e até mesmo sobre nossa biologia. Um exemplo é a "morte vodu", na qual uma morte súbita é provocada pelo medo.

    Em um caso famoso documentado por um dos primeiros exploradores da Nova Zelândia, uma mulher maori comeu acidentalmente algumas frutas de um local considerado proibido. Depois de anunciar que o espírito do chefe a mataria pelo ato de sacrilégio, ela morreu no dia seguinte.

    Se alguém poderia provocar a própria morte, apenas pelo medo, não está claro.

    No entanto, há fortes evidências de que nossos pensamentos e sentimentos podem ter um impacto físico tangível, como quando um paciente espera que um medicamento tenha efeitos colaterais e, por isso, ele acaba tendo — conhecido como efeito nocebo.

    "Eu diria que há, sem dúvida, casos em que o significado atribuído às experiências realmente muda biologicamente o que essa experiência é", diz Bonnie Kaiser, especialista em antropologia psicológica da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos EUA.

    Ela dá o exemplo do transtorno kyol goeu ("sobrecarga de vento", em tradução literal), um enigmático desmaio que é prevalente entre os refugiados do Khmer Vermelho nos EUA.

    Em seu país natal, o Camboja, acredita-se que o corpo está repleto de canais que contêm uma substância semelhante ao vento — e, se eles forem bloqueados, a overdose de vento resultante fará com que o paciente perca permanentemente o uso de um membro ou morra.

    De 100 pacientes refugiados do Khmer em uma clínica psiquiátrica nos EUA, um estudo constatou que 36% já haviam tido um episódio do transtorno em algum momento.

    Os ataques geralmente ocorrem lentamente, começando com uma sensação geral de mal-estar. Até que, um dia, a vítima se levanta e percebe que está tonta — e é assim que ela sabe que o ataque está começando.

    Por fim, elas vão cair no chão, incapazes de se mover ou falar até que seus parentes tenham administrado os primeiros socorros apropriados, que geralmente consistem em massagear seus membros ou morder seus tornozelos.

    Revendo as doenças ocidentais

    Como nossa compreensão das doenças vinculadas à cultura melhorou, alguns psicólogos começaram a questionar se certas condições de saúde mental ocidentais também se enquadram nesta categoria.

    Embora certos transtornos pareçam ser universais — a esquizofrenia ocorre em todos os países do planeta, em uma taxa relativamente constante —, isso não é verdade para outros.

    A bulimia é menos frequente nas culturas orientais, enquanto a tensão pré-menstrual (TPM) é praticamente inexistente na China, em Hong Kong e na Índia. Já se argumentou, de forma um tanto controversa, que a depressão é uma invenção do mundo de língua inglesa, decorrente da noção equivocada de que é normal ser feliz o tempo todo.

    Na era moderna, seria ingênuo pensar que os transtornos mentais de que sofremos são independentes do nosso estilo de vida.

    "Acho que há uma tremenda arrogância na forma como universalizamos esses transtornos mentais, e não os vemos como social e historicamente específicos", diz Aho, ressaltando que o transtorno de déficit de atenção só foi adicionado ao DSM em 1980.

    "Está claro que as crianças têm mais dificuldade em prestar atenção agora, porque são bombardeadas com estímulos sensoriais, e sua existência é amplamente mediada por telas. Portanto, não é como se tivéssemos acabado de descobrir uma entidade médica distinta — é possível ver a maneira como a tecnologia está moldando a vida mental, emocional e comportamental das crianças."

    Independentemente da causa, em um mundo com cada vez mais mobilidade, alguns especialistas estão preocupados com o fato de que transtornos culturalmente específicos não estão sendo reconhecidos pelos profissionais de saúde mental.

    "Nas culturas do Leste Asiático, o vocabulário e a linguagem que as pessoas usam para expressar sua angústia e sintomas são bem diferentes", diz Sumin Na, psicóloga da Universidade McGill, no Canadá.

    Isso significa que, quando as pessoas do Leste Asiático migram para lugares como a América do Norte, muitas vezes não fica claro quando elas precisam de ajuda.

    Em uma época em que se observam perdas drásticas na diversidade de praticamente todos os outros tipos — de espécies a idiomas —, sugeriu-se que estamos em um precipício, potencialmente prestes a perder nossa variedade de transtornos mentais também.

    No livro Crazy Like Us ("Loucos como nós", em tradução livre), o autor Ethan Watters descreve como passamos as últimas décadas lenta e insidiosamente americanizando o transtorno mental — nos forçando colocar uma variedade de experiências emocionais e psicológicas existentes em algumas "caixas" aprovadas, como ansiedade e depressão — e "homogeneizando a maneira como o mundo enlouquece".

    Nesse processo, não só corremos o risco de perder diagnósticos e assim os tratamentos mais adequados, mas também a oportunidade de entender como os transtornos mentais se desenvolvem.

    FONTE: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce8e152zjp8o

    quarta-feira, 27 de novembro de 2024

    Consumo nocivo de álcool após a pandemia: um problema ainda não superado

     Novembro de 2024.

     

    Pesquisa recente aponta que o aumento no consumo de álcool observado durante a pandemia de COVID-19 persistiu em 2022, destacando possíveis efeitos duradouros relacionados ao estresse e mudanças comportamentais. 

    O consumo nocivo de álcool é uma das principais causas evitáveis de morbidade e mortalidade nos Estados Unidos e em diversos outros países. Durante a pandemia de COVID-19, foi registrado um aumento no consumo de álcool associado ao estresse e um crescimento nas mortes relacionadas a ele. Estudos anteriores já documentaram esses impactos, mas havia, e há, a necessidade de avaliar se os padrões de aumento no consumo persistiram após a pandemia.

    Um estudo recente1, publicado em novembro de 2024, teve por objetivo determinar se o aumento no consumo de álcool observado durante a pandemia (2020, em comparação a 2018) foi mantido em 2022, após o período pandêmico mais grave. Para isso, foram utilizados dados transversais de adultos (≥18 anos) participantes do National Health Interview Survey (NHIS) entre 2018 e 2022 - essa pesquisa nacionalmente representativa usa amostragem complexa para refletir a população dos EUA - 24.965 participantes em 2018, 30.829 em 2020 e 26.806 em 2022. Vale destacar que os principais desfechos avaliados foram o consumo de álcool no último ano e o consumo excessivo, definido pelo National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism - NIAAA - como cinco ou mais doses em um dia (ou ≥15 doses por semana) para homens e quatro ou mais doses em um dia (ou ≥8 doses por semana) para mulheres.

    O principal achado do estudo foi o de que o consumo de álcool aumentou tanto em 2020 quanto em 2022, em comparação a 2018. Olhando para o consumo de álcool no último ano, observou-se um aumento de 2,69% em 2020 e 2,96% em 2022; já para o consumo excessivo, houve um aumento de 1,03% em 2020 e 1,18% em 2022.

    Os resultados indicam que o aumento no consumo de álcool durante a pandemia não foi temporário, mas permaneceu alto e em crescimento em 2022. Isso pode estar relacionado, segundo os autores do estudo, ao estresse prolongado causado pela pandemia, persistência das mudanças nos hábitos das pessoas e a dificuldade em acessar serviços de saúde durante esse período. Apesar de algumas limitações, como a exclusão de populações militares ou institucionalizadas e possíveis respostas imprecisas dos participantes, os dados fornecem uma visão clara sobre uma questão de saúde pública.

    Por fim, é possível concluir que o aumento no consumo de álcool durante e após a pandemia de COVID-19 representa um problema sério e que exige atenção. É necessário ampliar o acesso a serviços de triagem para identificar consumo nocivo, melhorar o suporte psicológico nos sistemas de saúde e promover ações nas comunidades para ajudar pessoas mais vulneráveis. Essas medidas podem reduzir os impactos na saúde pública associados ao aumento do consumo de álcool desde a pandemia - um problema ainda não solucionado. 

    FONTE: https://cisa.org.br/pesquisa/artigos-cientificos/artigo/item/507-consumo-nocivo-de-alcool-apos-a-pandemia-um-problema-ainda-nao-superado

     

    sexta-feira, 23 de agosto de 2024

    'Sou psicopata e quero que a sociedade entenda meu transtorno'

     André Biernath

  • Role, Da BBC News Brasil em Londres
  • Twitter,

    Um comercial de TV dos anos 1990 trouxe um dos primeiros sinais de que a advogada americana Jamie L. — que usa o pseudônimo M. E. Thomas — poderia ter algum transtorno de personalidade.

    "Na infância, aos 8 ou 9 anos, estava assistindo televisão com meu pai quando vi uma propaganda sobre uma campanha de arrecadação de fundos contra a fome na África. As imagens mostravam uma criança muito magra. Na cena seguinte, uma mosca pousava nos olhos dessa criança, que não esboçava nenhuma reação", descreve ela.

    "Eu comentei: 'Nossa, mas que criança burra… Ela não consegue nem afastar uma mosca dos próprios olhos?'"

    O pai de Thomas, claro, estranhou a reação da filha e questionou se ela não tinha empatia.

    "Eu não sabia o que essa palavra significava. Ao entender o que era empatia, percebi que talvez não tivesse mesmo esse sentimento", relata ela.

    Thomas compartilhou essa história durante uma roda de conversa promovida no dia 12 de agosto pela Psycopathy Is ("Psicopatia É", em tradução livre), uma associação criada por pesquisadores nos Estados Unidos para fomentar estudos sobre esse transtorno psiquiátrico.

    O grupo — o primeiro e único no mundo focado neste tema — também oferece suporte a famílias com casos de psicopatia e realiza campanhas de conscientização sobre o transtorno.

    Dias depois da palestra, Thomas aceitou o convite para conversar com a BBC News Brasil, onde compartilhou alguns outros episódios que vivenciou nas últimas décadas e sua trajetória antes e depois do diagnóstico.

    Antes de entrar nos detalhes da entrevista, vale fazer uma breve explicação técnica.

    Atualmente, os manuais de psiquiatria não usam mais os termos sociopatia ou psicopatia — algo que gera muita controvérsia e intermináveis debates entre especialistas da área.

    Essas duas condições, psicopatia e sociopatia, estão de alguma maneira englobadas no chamado "transtorno de personalidade antissocial" — embora existam testes que avaliem especificamente traços de psicopatia.

    A Associação Americana de Psiquiatria classifica a condição como "uma das doenças mentais mais incompreendidas, com pouco diagnóstico e tratamento".

    Ela faz parte de um grupo maior de enfermidades que afetam a personalidade, que também inclui condições como o borderline, o narcisismo, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), a paranoia, entre outros.

    Como é possível notar em vários trechos da entrevista, Thomas mesmo utiliza todos os termos — sociopatia, psicopatia e transtorno de personalidade antissocial — para descrever sua condição.

    Ela começa contando sobre um episódio que viveu na transição entre a infância e a adolescência.

    "Quando tinha uns 12 anos, o pai de uma amiga veio falar comigo. Ele me disse que a filha dele me adorava e prezava pela nossa amizade, mas gostaria que eu parasse de bater nela", relata Thomas.

    "Eu fiquei muito surpresa, porque nunca havia percebido que fazia aquilo."

    A advogada também lembra de alguns episódios da infância e da adolescência em que ela invadiu a casa de pessoas próximas.

    "A ideia era apenas fazer uma brincadeira, como mudar algumas coisas de lugar para deixar os moradores confusos. Eu acreditava que isso seria engraçado, mas hoje percebo que se tratava de uma enorme invasão de privacidade."

    Nos tempos de escola, Thomas também passou por episódios de agitação — como quando arremessava livros ou dicionários em colegas durante uma aula particularmente tediosa.

    "Também brincávamos de um futebol americano sem nenhuma regra. Eu pegava alguns colegas e dava socos e mais socos neles."

    Ainda na adolescência, Thomas diz ter feito apostas com uma amiga para ver quem conseguiria beijar um garoto que ambas gostavam. O problema é que ela já sabia de antemão que o menino estava afim dela.

    "Eu não levei em consideração os sentimentos da minha amiga, fui apenas oportunista. Na hora, só pensava nos vinte dólares que iria ganhar", diz.

    "Por outro lado, sempre fui muito bem nas aulas e tirava boas notas. Então os professores não sabiam muito bem como lidar comigo."

    Thomas entende que sempre sentiu uma certa "insensibilidade, uma falta de consciência sobre o que acontecia" ao seu redor.

    No entanto, isso não era algo que chamava sua atenção durante a infância e a adolescência.

    "Eu não me considerava diferente dos demais. Talvez suspeitasse que apenas fosse mais esperta", afirma.

    "Além disso, minha família é numerosa, somos mórmons e todos temos aptidões musicais. Então, de certa maneira, já éramos uma família um tanto esquisita", observa ela.

    Será que você é sociopata?

    Thomas confessa que sempre notou uma "dificuldade em ser colocada em determinadas situações", quando precisava fazer uma espécie de atuação para mascarar aquilo que realmente sentia.

    "Também sempre foi muito difícil me engajar em qualquer coisa, a menos que aquilo me trouxesse um benefício direto."

    Uma das atividades que se encaixou nesse requisito da recompensa foi a faculdade de Direito, onde Thomas formou-se advogada.

    Foi nos tempos de universidade que ela ouviu a primeira sugestão de que poderia sofrer com algum transtorno de personalidade.

    No segundo ano de curso, em meados de 2004, ela fez um estágio num órgão governamental e dividiu o escritório com outra mulher.

    "Não havia muito o que fazer, então conversávamos bastante. E comecei a notar que essa colega tinha várias vulnerabilidades, que eu poderia usar para manipulá-la", lembra.

    "Ela falava abertamente comigo e contou que foi abandonada pelos pais e adotada por outra família, era homossexual e ao mesmo tempo super religiosa."

    Com o passar do tempo, Thomas ficou muito interessada pela colega — e ela própria começou a se abrir mais e a contar detalhes pessoais.

    "Senti que essa colega de estágio não representava qualquer tipo de ameaça para mim. Ela era praticamente um passarinho ferido", compara.

    "Hoje, sei que na verdade ela não era assim, e essa avaliação vinha de meu preconceito psicopata", pondera a advogada.

    Depois de algumas semanas de bate-papo, essa colega de trabalho fez uma pergunta decisiva para a vida de Thomas: "Ela me disse: 'Você já considerou a possibilidade de ser uma sociopata?'"

    A palavra não despertou nenhuma emoção específica na estudante de Direito.

    "Como sou mórmon, não havia visto nenhum dos filmes mais famosos e violentos que abordam esses transtornos, como Psicopata Americano", relata ela.

    Thomas resolveu então buscar na internet o significado do termo e encontrou algumas informações — entre elas, uma lista de 20 sintomas elaborada pelo psicólogo canadense Robert D. Hare, que até hoje é considerada uma das principais ferramentas para fazer o diagnóstico da psicopatia.

    Entre os sinais listados pelo especialista, estão charme, senso grandioso de autoestima, necessidade de estímulos constantes, propensão ao tédio, mentiras frequentes, facilidade de manipular os demais, falta de remorso, ausência de empatia, impulsividade...

    "Cheguei à conclusão que essas características me descreviam muito bem", conta Thomas.

    "Mas à época não dei muito valor a isso. Achei que essas informações eram apenas uma curiosidade qualquer, como descobrir que você tem algum grau de parentesco com uma antiga rainha da França", brinca ela.

    Ao redor de 2008, já formada e com a experiência de trabalhar num escritório de advocacia prestigiado, Thomas começou a ver que sua vida colapsava.

    "A empresa passou a insinuar que não havia futuro para mim ali. Uma amiga muito próxima descobriu que o pai estava com câncer e eu decidi que precisava me afastar, porque ela estava com muitas demandas emocionais."

    "Também enfrentei uma série de problemas em relacionamentos amorosos e com a minha família."

    Nessa época, Thomas notou que a vida dela era marcada por ciclos de cerca de três anos. Depois desse tempo, tudo o que ela construía — em termos de relacionamentos pessoais, amorosos e profissionais — virava ruína.

    "Era como se eu apertasse um botão 'dane-se' e não conseguisse mais cumprir um papel", raciocina ela.

    "Eu não me sentia bem com isso, mas sempre chegava nesse ponto de não gostar mais do trabalho, de cansar de fingir que era uma boa amiga... Eu precisava parar tudo, porque não me sentia mais interessada, como se aquelas coisas não valessem mais a pena."

    Nesses momentos de baixa, Thomas se sentia desgastada por precisar manter uma certa "máscara de normalidade" diante dos outros, quando sentia justamente o contrário.

    "Foi aí que pensei: será que isso acontece comigo porque sou sociopata?"

    Entre o blog e o livro, um diagnóstico

    Nesse mar de incertezas, Thomas decidiu resgatar um hábito da infância e da adolescência: escrever em um diário.

    Só que dessa vez, ela resolveu fazer isso no mundo digital. Para isso, criou o blog Sociopath World ("Mundo Sociopata", em tradução livre).

    "Como usava pseudônimo e nunca me identifiquei, muita gente sempre achou que eu fosse um homem. Ninguém pensava que uma mulher estava por trás do blog", observa.

    Após compartilhar textos na internet por cerca de um ano e meio, a advogada recebeu uma mensagem de uma agente literária, que a convidou para escrever um livro sobre o tema.

    A ideia foi materializada em 2013, com a publicação de Confessions of a Sociopath: A Life Spent Hiding in Plain Sight ("Confissões de uma sociopata: Uma vida escondida à vista de todos", em tradução livre).

    No entanto, antes de iniciar esse projeto, Thomas sentiu a necessidade de confirmar que de fato era acometida por um transtorno — até então, ela tinha fortes suspeitas, mas nunca havia passado pela avaliação de um profissional de saúde.

    "Nesse momento, em meados de 2010, já havia me recuperado e trabalhava como professora de Direito. Se há algo bom de ser psicopata, é essa capacidade de voltar ao auge rapidamente."

    Um psicólogo pediu que ela fizesse uma série de testes cognitivos. Após a consulta, a conclusão estava clara: Thomas tinha mesmo um transtorno de personalidade.

    Ela avalia que receber o diagnóstico "oficial" não representou nenhum significado especial na vida dela.

    "Sabe quando você já suspeita de algo? Para mim, o diagnóstico foi parecido ao caso das mulheres que de certa maneira sentem que estão grávidas e só fazem um teste para confirmar aquilo que já tinham conhecimento", compara ela.

    "Mas, por outro lado, eu até tinha esperanças de que poderia ser diagnosticada com qualquer outra doença, porque assim as coisas seriam muito mais fáceis para mim."

    "Se os profissionais de saúde tivessem detectado um câncer no meu cérebro, por exemplo, seria responsabilidade deles cortar o tumor dali."

    "Agora, o transtorno de personalidade é um trabalho com o qual eu mesma precisarei lidar pelo resto da minha vida", complementa ela.

    No entanto, mesmo com o diagnóstico em mãos, Thomas não iniciou o tratamento logo de cara.

    "Aqui nos Estados Unidos, os seguros de saúde só aceitam pagar por terapias que são consideradas efetivas pelas associações da área. E, estranhamente, não existem tratamentos que se encaixam nesse critério para o transtorno de personalidade antissocial."

    "Muitos especialistas também não se sentem à vontade para lidar com pacientes que tenham sociopatia ou psicopatia", acrescenta.

    Preços de assumir abertamente a psicopatia

    Após o lançamento do livro em 2013, Thomas participou de algumas entrevistas na televisão — e algumas pessoas a reconheceram.

    "Um dos alunos do curso de Direito escreveu à administração da faculdade para dizer que se sentia ameaçado pelo fato de ter uma professora sociopata", diz.

    "A equipe de segurança da universidade me mandou um e-mail para informar que eu não poderia mais ir ao campus."

    "Eu respondi que aquilo era um ato grosseiro de discriminação e que me solidarizava com o fato de o aluno se sentir ameaçado, mas nunca fiz nada diretamente contra ele", afirma.

    "Além disso, eu não tinha, e não tenho, nenhum histórico criminal ou de violência depois de adulta. Achei absurdo alguém manifestar um incômodo pela minha simples existência."

    Segundo Thomas, a direção dobrou a aposta. "Eles me informaram que, além de ser demitida e banida, eu estava proibida de transitar num raio de um quilômetro do campus ou de qualquer pessoa relacionada com a faculdade."

    "Sofri muito preconceito e ninguém parecia ligar", lamenta ela.

    "As pessoas me trataram muito mal e desenvolvi uma espécie de transtorno pós-traumático. Durante a noite, eu acordava de súbito, com crises de ansiedade", conta.

    Nessa mesma época, um irmão da advogada que sempre teve problemas de saúde mental começou a fazer sessões com um psicoterapeuta.

    "Ele fez o tratamento por cerca de dez meses e parecia uma outra pessoa. Ele tinha uma série de problemas e rapidamente se tornou um adulto funcional e competente."

    A advogada resolveu seguir o exemplo do familiar e começou a fazer sessões com o mesmo terapeuta.

    "Por questões relacionadas ao plano de saúde, ele definiu logo de cara que iria tratar o meu transtorno de personalidade, mas não chegou a especificar o tipo."

    Uma das primeiras metas traçadas nas consultas foi lidar com o "vício" em manipular as pessoas.

    "Eu não sabia como manter um relacionamento com alguém sem fazer isso", admite Thomas.

    "O terapeuta me chamava a atenção para determinadas situações e me sugeria maneiras de fazer pequenos ajustes na forma como interagia com os outros", detalha ela.

    A advogada admite que passou a sentir-se bem melhor conforme o tratamento evoluiu.

    "Não foram apenas os relacionamentos que melhoraram, mas a minha própria experiência neles evoluiu. Esse contato com os outros se tornou mais relevante, mais real, e comecei a me importar mais com as pessoas", diz ela.

    "Antes, eu via as interações sociais como algo semelhante a ir para academia. Era algo que eu precisava fazer, mas não necessariamente gostava. Hoje em dia, os relacionamentos são super recompensadores para mim."

    Em 2017, Thomas iniciou um novo projeto: conhecer e conversar com outros indivíduos com suspeita ou diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial.

    "A primeira pessoa que visitei foi na Tasmânia, na Austrália. A mais recente foi em Amsterdã, na Holanda, em abril deste ano", informa ela.

    Segundo a advogada, geralmente esses contatos têm dois propósitos principais.

    "Primeiro, há um grupo de pessoas que suspeitam ter sociopatia ou psicopatia. Elas me descobrem pelo blog ou pelo livro e se identificam com o que conto."

    "A segunda categoria engloba os indivíduos que precisam de ajuda. Eles estão num período de dificuldade e não sabem o que fazer para mudar."

    Futuro sem estigmas e preconceitos

    Apesar de entender a importância de falar abertamente sobre a psicopatia e o transtorno de personalidade antissocial, Thomas se ressente do preconceito que precisa enfrentar.

    "Muitas pessoas me tratam mal em nome de uma pretensa intenção de se proteger de mim", destaca ela.

    Talvez o estigma mais forte seja aquele que relaciona psicopatia com violência e atos criminosos.

    A associação Psycopathy Is admite que "a psicopatia aumenta o risco de comportamentos agressivos e antissociais".

    "No entanto, muitas pessoas com psicopatia não são violentas. E muitas pessoas que são violentas não são psicopatas."

    "Cada indivíduo com psicopatia possui diferentes atributos e desafios — e a forma como crianças ou adultos com psicopatia se saem na escola, no trabalho ou em ambientes sociais varia bastante", pontua a entidade.

    Para Thomas, que segue trabalhando com advocacia, esses estigmas relacionados à psicopatia vêm em parte da própria ciência, "por meio de pesquisas que fazem extrapolações e estão longe de representar a diversidade de pacientes com o transtorno".

    "Existem muitos fatores que podem causar a violência, e a psicopatia é apenas uma delas. O mesmo vale para outros transtornos", defende a advogada.

    Mas ela suspeita que muitos preconceitos e temores relacionados à psicopatia têm uma origem ainda mais profunda.

    "De onde vem essa estranha necessidade das pessoas se preocuparem com a forma como os outros manifestam seus sentimentos?", questiona ela.

    A advogada cita o exemplo hipotético de um funeral. Geralmente, é esperado que todos demonstrem tristeza, chorem ou ao menos se compadeçam dos familiares e amigos que estão num momento de sofrimento.

    No entanto, pessoas com transtorno de personalidade antissocial podem não ter esses sentimentos num momento desses — e muitas vezes precisam fingir e atuar para não serem julgados e criticados.

    "Me parece que a sociedade está sempre policiando os sentimentos — e todos aqueles que possuem um universo emotivo diferente, que experimentam a empatia de formas diversas, são discriminados."

    Thomas cita o movimento de humanização do autismo: até pouco tempo atrás, indivíduos com esse transtorno eram excluídos e não existiam estruturas para acolhê-los na sociedade.

    Felizmente, esse cenário está mudando — nos últimos anos, campanhas de conscientização e políticas públicas criaram espaços adaptados, para que pessoas com autismo fossem incluídas e pudessem participar de diversas atividades.

    "Espero que isso seja ampliado para públicos com outras condições além do autismo. Como psicopata, quero que a sociedade entenda e acolha o meu transtorno", diz ela.

    "Sonho com um futuro em que a psicopatia não seja apenas acolhida, mas que pessoas com diferentes diagnósticos psiquiátricos possam expressar suas reações emocionais sem serem julgadas."

    Thomas pondera que "psicopatas que cometeram crimes precisam ser punidos por suas ações".

    "Se eles fizeram algo errado, devem ir à prisão como qualquer um", reforça ela.

    "Mas não me parece correto que pessoas com o transtorno que nunca se envolveram em qualquer problema legal sejam constantemente julgadas, perseguidas e obrigadas a mascarar seus sentimentos."

    "Isso requer muita energia nossa. Seria muito melhor para os psicopatas e para a própria sociedade se pudéssemos ser nós mesmos."

    "Se não tivéssemos que usar tanta força de vontade para mascarar quem somos, talvez sobrasse mais energia para fazer coisas boas pela sociedade, como nutrir relacionamentos ou propor soluções", defende.

    Questionada se há uma única coisa que o público em geral poderia aprender sobre a psicopatia, Thomas responde que é preciso acabar com generalizações que transformam todo um grupo em algo negativo.

    "Certamente existem muitas coisas consideradas ruins entre psicopatas. Mas talvez a primeira delas seja o fato de sermos diferentes", conclui ela.

    FONTE: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1d7ng9gd4wo