O governo federal prepara um documento que coloca em prática uma nova
política de atendimento à saúde mental no Brasil. Entre outros pontos,
prevê a internação em hospitais psiquiátricos e o financiamento para
compra de máquina de eletrochoques. Baseada em portarias e resoluções
publicadas entre outubro de 2017 e agosto de 2018, a "nota técnica"
chegou a ser divulgada no site do Ministério da Saúde na segunda-feira
(4). Entretanto, criticado por especialistas, o texto foi retirado do ar
dois dias depois.
O ministério afirmou ao G1,
nesta terça-feira (12), que o texto ainda não está pronto. Segundo a
pasta, a "nota técnica" está em consulta interna no SEI (Sistema
Eletrônico de Informações) para receber contribuições de servidores do
ministério e de outros órgãos, como o Conass (Conselho Nacional de
Secretários de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias
Municipais de Saúde).
Depois de chegar à versão final, o documento ainda precisa ser aprovado
pela diretoria da área e pela secretaria. Não há uma data prevista para
conclusão e implementação.
Os principais itens em consulta interna no ministério são:
- Inclusão dos hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps);
- Financiamento para compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, mais conhecidos como eletrochoque;
- Possibilidade de internação de crianças e adolescentes;
- Abstinência como uma das opções da política de atenção às drogas.
Abaixo, o G1 mostra os marcos legais, os principais destaques do texto e a opinião de quatro especialistas que listam pontos contra e a favor das mudanças.
História e marcos legais
De acordo com parte dos especialistas ouvidos pelo G1,
os principais itens da nota técnica vão na contramão da lei 10.216, de
2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que estabeleceu novas
diretrizes para o cuidado à saúde mental no Brasil.
Antes da lei de 2001, era comum que pessoas com transtornos mentais
fossem internadas indefinidamente em hospitais psiquiátricos que
funcionavam como asilos, onde sofriam maus-tratos — como mostrado, por
exemplo, no livro "Holocausto Brasileiro", da jornalista Daniela Arbex,
que conta a história dos tratamentos infligidos aos pacientes do
Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.
Paciente no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. — Foto: Arquivo/Centro Cultural do Ministério da Saúde
Com o movimento da reforma psiquiátrica, iniciado nos anos 70 e
fortalecido com a instituição do SUS, em 1988, a inclinação passou a ser
para um "modelo substitutivo", no qual os pacientes fossem atendidos
fora dos hospitais, com destaque para o convívio social e o fechamento
de leitos psiquiátricos.
É nesse contexto de substituir os antigos manicômios que surge o
primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps), em 1986. O Caps é uma
unidade de atendimento do SUS voltada à saúde mental, com profissionais
de diversas especialidades, onde pacientes com transtornos psiquiátricos
ou problemas causados por álcool e drogas podem ser tratados. Na
previsão da nota técnica, os Caps deixam de ser a principal referência
no atendimento.
Destaques da nota técnica
1 - Inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps)
Com uma resolução de dezembro de 2017, o Ministério da Saúde incluiu os hospitais psiquiátricos, junto
com os ambulatórios e os hospitais-dia, nas Redes de Atenção
Psicossocial (Raps) do SUS, que tratam do cuidado à saúde mental. Não haverá mais o chamado "modelo substitutivo".
Dessa forma, os Caps não irão mais substituir os hospitais
psiquiátricos que ainda permanecem em atividade — os dois modelos de
atendimento deverão coexistir.
Por outro lado, o documento proíbe a ampliação do número de leitos em
hospitais psiquiátricos, determinando que esses leitos sejam oferecidos
em hospitais gerais, dentro de enfermarias especializadas. Em sua atual
versão, a norma do Ministério da Saúde estabelece que os hospitais
gerais devem ter equipe qualificada, com enfermaria especializada ao
atendimento psiquiátrico, com até 30 leitos.
Segundo o texto, a política de retirar dos hospitais pessoas internadas
há muito tempo permanece, assim como a implantação qualificada de
enfermarias psiquiátricas capacitadas em hospitais gerais.
Os especialistas que são a favor da inclusão dos hospitais argumentam que a medida pode salvar vidas, pois existem casos severos em que o paciente precisa de hospitalização
para sair da crise ou representa uma ameaça a si ou a outras pessoas.
Como vários hospitais gerais sofrem com falta de leitos, fazer com que
alguns deles fossem reservados à psiquiatria poderia trazer problemas.
Por outro, alguns especialistas afirmam que a norma vai contra o movimento de desospitalização instituído
no Brasil, reforçando o modelo anterior à Reforma Psiquiátrica e
excluindo os pacientes do convívio social. O atendimento delas, afirmam,
poderia ser feito nos leitos reservados à psiquiatria nos hospitais
gerais.
A favor
Antônio Reinaldo Rabelo, psiquiatra, professor associado aposentado da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba):
“Apesar
de ficar como reduto último, há casos que o Caps [Centro de Atenção
Psicossocial] não tem condição de cuidar, de resolver. Se o paciente não
toma remédio, ou a família não dá, tem que internar. Os hospitais
gerais têm déficit de leitos. Se está com déficit em clínica e cirurgia,
como é que vai ceder espaço para leitos de psiquiatria? A
mentalidade antimanicomial não é para deixar de internar; é para não
internar aqueles que podem ser tratados fora do hospitais. Mas há casos — e que são raros — que o hospital tem que internar, e é obrigado a atender”.
Emmanuel Fortes, psiquiatra e vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM):
“Não
tem um retorno ao modelo anterior. O que tem é a incorporação do
hospital e do ambulatório psiquiátricos à Raps — que foram expurgados do
rol de equipamentos, como se doença mental não existisse e as pessoas
não precisassem de hospitalização. Nem sempre um hospital geral
apresenta requisitos e condições para tratar uma pessoa violenta,
agitada, desnorteada. A estratégia [de desospitalização] continua sendo a
da política de saúde mental. O que está se anunciando é a possibilidade
de tratar as pessoas que estão em crise, em risco de suicídio, de matar
alguém de serem agredidas em um lugar seguro.”
Contra
Marisa Helena Alves, psicóloga, parte da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (CNS)
“Entendemos
como um retrocesso. A Raps, antes, não tinha o hospital psiquiátrico
como o local de atendimento, porque atenderia a pessoa de forma mais
humanizada. Para quem conhece a realidade do manicômio, é isso que nos indigna — ele nunca foi um local de tratamento. Sempre foi um local onde as pessoas foram depositadas — você limpa a cidade e coloca ali. Ele indo pro hospital geral, é
atendido na crise. Com medicação, com terapias, ele sai da crise e o
acompanhamento pode ser feito na Caps. Um dos problemas é que os
hospitais gerais têm muita resistência em aceitar o paciente
psiquiátrico, por preconceito. Tem que ter uma equipe especializada.”
Girliane de Souza, enfermeira psiquiátrica e professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
“Quando
é um caso que não consegue ser manejado no Caps, com agressividade
muito grande, ou é um município sem Caps 24h, aí, sim, ela vai para um
hospital. Mas o que a lei fala é que tem ter leitos psiquiátricos dentro
do hospital geral. Por que não ter uma equipe para tratar essa pessoa?
Às vezes essa pessoa também tem uma demanda clínica, principalmente em
usuários de álcool e outras drogas. O que a gente questiona é por que
voltar o modelo de hospitais psiquiátricos, se existem outros
dispositivos que cuidam tão bem dos usuários de saúde mental? Se não vai
ter um aumento de investimento em saúde, por que não fortalecer os
Caps, aumentar o número de leitos no Caps que já existem?”.
2 - Incentivo ao uso da eletroconvulsoterapia (ECT)
Com a nota, o Ministério da Saúde passaria a financiar a compra de
aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) para tratamento de pacientes
com transtornos mentais graves ou que não respondem a outros
tratamentos. O equipamento consta na lista de materiais do Fundo
Nacional de Saúde, vinculado ao SUS.
Segundo Antônio Reinaldo Rabelo, professor aposentado da Ufba, o
tratamento não causa danos ao cérebro e faz um "embaralhamento" nos
circuitos do cérebro que estão com defeito. O tratamento com ECT é feito
em várias sessões, mas, segundo ele, tem efeito mais rápido do que os
antidepressivos, por exemplo.
A favor
Emmanuel Fortes, CFM
"A
ECT é um instrumento que salva vidas. O paciente com depressão e risco
de suicídio que não responde à terapêutica medicamentosa precisa tomar.
Isso é outro grande preconceito que foi disseminado junto à população —
nós que somos clínicos sabemos a utilidade. Eles devem incorporar. É
tecnologia a serviço da vida. O CFM estabeleceu que há uma sala para
esse tipo de tratamento — uma sala quase cirúrgica, com estrutura de
suporte à vida para tratar de intercorrência."
Contra
Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde
"Eu
quero que fique bem claro: ele é um aparato terapêutico, médico,
aprovado cientificamente, que tem que ser feito em centro cirúrgico. Mas
pode ser usado de forma inadequada. E a gente tem comprovação,
inclusive através das inspeções, que não era feito da melhor maneira —
foi usado inclusive como forma de punição. O que a gente tem receio é
desse retrocesso, do uso sem restrições, indiscriminado, porque não é
para qualquer um. É um procedimento invasivo, como uma cirurgia.
Torna-se difícil prever que, de um dia pro outro, o que era um
instrumento de tortura faça-se um instrumento terapêutico."
Girliane de Souza, UFMG
"É
um ponto obscuro. Precisa ter um protocolo. Existem clínicas privadas
que fazem, com protocolo de anestesia. É indicado para os casos que não
respondem a medicamento. A nota técnica fala, mas não diz como vai ser o
protocolo. Isso precisa ficar muito claro, para que a gente não repita
os erros do passado."
Com ressalvas
Antônio Reinaldo Rabelo, Ufba
"Não
existe nada melhor pra depressão e esquizofrenia refratárias do que a
ECT — inclusive causa menos problema do que remédios. Tem grande
indicação terapêutica. Pena que é cara. Se for para empregar com
condições técnicas — em centro cirúrgico, com anestesista, equipamentos
de ressuscitação, tudo bem. Mas poucos hospitais terão condições de ter
uma sala cirúrgica com anestesista para fazer isso."
3 - Internação de crianças e adolescentes
A nota do Ministério da Saúde previa a possibilidade de internação de
crianças e adolescentes em enfermarias psiquiátricas de hospitais gerais
ou em hospitais psiquiátricos. Segundo o posicionamento do Conselho
Regional de Medicina de São Paulo, citado no texto, essa internação deve
ser feita, preferencialmente, em área separada da dos adultos.
Uma portaria do Ministério da Saúde, que estabelece os valores pagos
pelo governo pela diária de internação em hospitais psiquiátricos, a
idade mínima do paciente aparece como 12 anos. Quando questionado pelo G1 sobre a possibilidade de crianças abaixo dessa idade serem internadas, no entanto, a pasta não respondeu.
A favor
Emmanuel Fortes, CFM
"[A
internação infantojuvenil] funciona do mesmo jeito que pra adulto, só
que num ambiente adequado para tratar crianças e adolescente. Hoje, nós
não temos essa especificação porque ninguém tem onde tratar as crianças
que entram em crise. Quando se interna num hospital de adulto, são
problemas seriíssimos. Então as diretrizes estão corretas."
Contra
Antônio Rabelo, UFBA
“Nunca
aconselhei, sempre fui contra. Colocar uma criança internada em
hospital tem um efeito iatrogênico [efeito negativo de um tratamento]
muito grande. Tirar da vida social, da escola — isso é um trauma
irrecuperável para uma criança.”
Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde
"Na
minha opinião, não. O que deve ter é assistência à criança e ao
adolescente — nos Caps infantis, nos Caps para adolescentes,
principalmente os adolescentes usuários de drogas. Reforçar esses
mecanismos de atenção: o pai e a mãe vão, recebem orientação, aprendem a
lidar com a situação, conhecem melhor o problema que o filho tem.
Existem casos que precisam de internação, a gente não nega isso. O que a
gente questiona é como se faz isso. Criança com doença, com transtorno,
dá trabalho — mas isso é responsabilidade da família. Tem que ter
aparato do Estado, assistência, medicamento, o local para ser socorrido
na crise — mas não pode ter o lugar para depositar e deixar lá."
Girliane de Souza, UFMG
“É
um ponto extremamente problemático, porque a gente vê um uso
indiscriminado de remédios psiquiátricos na infância. Como vão se dar
essas internações, a questão medicamentos — é um lado obscuro, a gente
não sabe como vai funcionar. E a gente se não vai ter um impacto
negativo no desenvolvimento cognitivo, afetivo, social da criança, já
que ela não vai estar na escola”.
4 - Uso da abstinência no tratamento contra as drogas
Segundo a nota técnica, a abstinência — na qual o usuário larga por
completo o contato com as substâncias — passa a ser uma das estratégias
da política de atenção às drogas, assim como a redução de danos, que era
enfatizada anteriormente. Nesta última, busca-se encontrar soluções que
sejam menos prejudiciais à saúde das pessoas: trocar o crack por um
cigarro, por exemplo.
A favor
Emmanuel Fortes, CFM
“Nós entendemos que, para que você tenha saúde mental, tem que estar em abstinência.
Você não vai manter a pessoa em contato com a substância, vinculada a
um padrão de consumo. A tolerância à droga tem que ser zero. A pessoa se
trata efetivamente quando compreende que precisa se tornar abstêmia.”
Contra
Girliane de Souza, UFMG
"A abstinência não é o melhor tratamento, pelo contrário — é o mais ineficaz.
No caso de uso e abuso de substâncias. A redução de danos trabalha na
lógica de empoderar a pessoa — quando ela quer [usar a droga], a
quantidade. Isso deu muito mais resultado. A abstinência nem sempre
funciona pra todo mundo — na verdade, não funciona pra todo mundo.”
Com ressalvas
Antônio Rabelo, UFBA
"É
impossível querer só abstinência, sem fazer redução de danos. Não pode
forçar a abstinência. A meta é abstinência, sim — mas, até lá, terá que
fazer a redução de danos."
Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde
"É
uma abordagem possível, mas não é a mais simples. O uso de drogas, a
doença — porque é uma doença — é de uma complexidade muito grande, que
envolve fatores pessoais, sociais, emocionais. Um único viés de
tratamento torna-se inoperante, porque vai depender de caso a caso. Tem pessoas que vão deixar de usar a droga pelo método de abstinência — outros precisarão de outros recursos. Quando
você cria uma política pública, tem que contemplar o universo de
abrangência dessa política — e não reduzi-la a determinados segmentos, a
determinadas possibilidades. Em se tratando de política pública, o
caráter de universalidade que ela tem em si, de atingir o maior número
possível de pessoas, tem que estar contemplado."
FONTE: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/02/12/nova-politica-de-saude-mental-e-alvo-de-criticas-entenda-4-pontos-e-veja-opinioes-contra-e-a-favor-das-medidas.ghtml
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