Por Redação Super
Flávia Gianini
Em 1962, numa visita à Argentina, o poeta americano Robert Lowell
mostrou que não ousava apenas em seus versos. Ele ofendeu o ditador José
Maria Guido em plena Casa Rosada, sendo expulso da residência oficial.
Com a tarde livre, partiu para uma série de escaladas em monumentos
públicos, performance que atingiu o clímax quando Lowell discursou nu do
alto de uma estátua. Após aborrecimentos com médicos provincianos,
voltou para casa tendo conhecido intelectuais do porte de Jorge Luis
Borges e cheio de ideias para novos poemas.
Esse retrato de um artista transgressor omite detalhes importantes. A
bordo de 6 martínis duplos antes do almoço, Lowell sabotou um evento
presidencial em sua homenagem. As tais escaladas revelavam seu instinto
autodestrutivo ele quase apanhou enquanto, pelado, declarava-se o
césar da Argentina. No encontro com Borges, o argentino conta que o
americano jogou-se no chão e ficou gemendo em posição fetal.
Paranoico, Lowell recorreu a comunistas para fugir do país, causando um
incidente diplomático só solucionado com sua internação psiquiátrica
foram mais de 20 ao longo da vida. Foram precisos 6 enfermeiros
parrudos e uma camisa-de-força para contê-lo, lembra Keith Botsford,
sua babá na viagem. A essa altura, o vencedor do Pulitzer vivia à base
de álcool e remédios, cada vez menos produtivo e mais instável. Ele
sofria de transtorno bipolar.
O surto de Robert Lowell mostra como é falso o charme dessa doença
psiquiátrica, que pode levar aos extremos da euforia e da depressão. Há
cada vez mais gente sofrendo de bipolaridade. Eles não precisam de
admiração nem desprezo, mas de ajuda.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 10% das pessoas sofrem
de algum distúrbio de oscilação de humor, com diferentes graus de
prejuízos na vida profissional e pessoal. Dentro desse universo estão os
que sofrem de transtorno bipolar. Ao longo dos anos, cada estudo que
tentou dimensionar a parcela da população mundial com a doença encontrou
um número maior que o anterior: o 1% em 1980 seria hoje, pelas
estimativas menos alarmistas, 3,5%.
Não deveria, mas soma-se a esses uma multidão que associa esse mal da
mente a sentimentos intensos, sede de viver, alma de artista, entre
outros clichês, e adota para si o rótulo de bipolar.Quem faz isso acaba
banalizando e transformando em moda uma doença grave, o que afasta do
tratamento os verdadeiros bipolares que, por uma combinação de
estímulo e predisposição, existem em números cada vez maiores.
Manual bipolar
Um das causas do crescimento do transtorno bipolar é artificial: por
mudanças nos critérios psiquiátricos, mais gente passou a ser
considerada bipolar. Essa história começa nos anos 60, quando o problema
ainda se chamava psicose maníaco-depressiva, nome que explica seus
altos (mania) e baixos (depressão). Como a maioria dos então
maníaco-depressivos não apresentava comportamento psicótico clássico
perda de contato com a realidade, delírios, alucinações , os americanos
rebatizaram a psychosys de illness, doença. Nos anos 80, surgiu uma
nova nomenclatura: bipolar disorder, logo retraduzida para o português
como transtorno bipolar.
Independentemente do nome do problema, antes só era considerado bipolar
justamente quem fosse de um polo a outro. Em um extremo, episódios
maníacos à la Robert Lowell em Buenos Aires; no ponto antípoda, a
depressão clássica, aquela que não deixa a pessoa sair da cama, que o
poeta também enfrentava de tempos em tempos.
Mas as coisas mudaram desde a 4ª edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV, na sigla em inglês), em 1994. O
DSM é como uma bíblia dos psiquiatras dos EUA, e por tabela, do resto
do mundo: se a doença está ali ela vale, assim como modificações em
seu conceito. Pois o manual redefiniu a bipolaridade, dividindo-a em 4
níveis de gravidade (ver quadro Dois polos, 4 problemas),
automaticamente reclassificando como bipolares casos mais leves de
oscilação de humor. Agora para ser classificado como bipolar não era
necessário ir de um extremo a outro: bastava oscilar dentro de um
espectro menor. É bipolar o sujeito que não chega a ficar nu em público,
mas ameaça fazê-lo.
Um efeito colateral dessa tendência de fatiar doenças já conhecidas,
criando novos transtornos, é o risco de tratar um problema localizado e
perder o quadro mais amplo. Criou-se um distúrbio específico para
compras compulsivas, quando isso é um dos principais sinais de
bipolaridade. É necessário que um quadro psiquiátrico seja avaliado em
sua totalidade, e não apenas em sintomas, afirma o psiquiatra e doutor
em neurociência Diogo Lara, da PUC-RS.
Ou seja: para quem já se surpreendia com os 3,5% da OMS, há
especialistas que acham que tem muito bipolar por aí sendo mal
diagnosticado com ansiedade, fobia ou depressão a unipolar mesmo. Um
estudo recente mostrou que, entre pacientes internados pela primeira vez
com depressão comum, metade veio a desenvolver um episódio de euforia
maníaca nos 15 anos seguintes.
Mundo bipolar
Sim, os atuais critérios de diagnóstico ampliaram o número de
bipolares e simpatizantes (quem nunca ouviu alguém dizer que é um pouco
bipolar?), geralmente um portador do transtorno da cara-de-pau. Mas a
impressão geral dos psiquiatras é que, sozinhos, os novos conceitos não
explicam o aumento, e que a porcentagem dos que oscilam entre euforia e
depressão está mesmo aumentando. A hipótese mais provável é que a origem
desse crescimento seja ambiental e pode vir desde o berço.
A infância é um período onde a mente é altamente moldável, e os bebês de
hoje já chegam ao mundo rodeados de um número sem precedente de
estímulos visuais, sonoros, olfativos, gustativos e táteis. Seus quartos
são muito coloridos, cheios de móbiles e brinquedos barulhentos. Desde
muito novas, nossas crianças já ouvem música e assistem TV, navegam na
internet, jogam games cada vez mais fascinantes, provam todo tipo de
comida e experimentam diferentes meios de locomoção.
Toda essa carga de estímulos e novidades a que estamos expostos desde o
nascimento poderia explicar parte dos diagnósticos. Principalmente a
bipolaridade na infância, considerada um mito há 15 anos e hoje uma
quadro indiscutível, afirma Kay Jamison, psicóloga, Ph.D. em
transtornos do humor e professora da faculdade de psiquiatria da John
Hopkins. Uma das maiores autoridades no assunto. Jamison sabe do que
está falando: aos 17 anos, teve sua primeira crise maníaca. Seu livro
com o psiquiatra Frederic Godwin, Manic Depressive Illness (Doença
Maníaco-Depressiva, sem edição brasileira) é uma referência desde a 1ª
edição, em 1990.
Mas a origem dos dois polos não fica apenas entre 4 paredes. A gente
vive em uma sociedade que valoriza a competição, a criatividade, o
risco, e consequentemente desvaloriza o comedimento, a calma e a
discrição. Até aí, tudo bem: ser ousado não faz de ninguém bipolar. Mas
martele esses conceitos na cabeça de uma pessoa com temperamento forte,
dada a extremos, durante vários anos, com várias mensagens subliminares
ou nem tanto... e pronto. Mais um para se juntar aos 340 milhões de
terrestres que sofrem com o transtorno. A combinação de excesso de
estímulos internos e externos promove o temperamento de busca de
novidades e não desenvolve a persistência. Esse é um padrão de
comportamento em bipolares, afirma Lara.
Da creche ao escritório, dá para entender por que muita gente sem-noção
resolve transformar bipolaridade em desculpa para seus atos. Até que
cobina bem com o espírito dos tempos sair do normal de vez em quando.
Mas valorizar esse descontrole pode ter consequências sérias a longo
prazo principalmente se a combinação de mania e depressão for uma
herança de família.
Família bipolar
Além dos fatores ambientais, outra parte da equação que gera a
bipolaridade é a carga genética. Para muitos cientistas, são os genes
que determinam a existência de um quadro maníaco-depressivo: o ambiente
só daria um empurrãozinho ladeira abaixo e acima. Os números
corroboram a teoria. O risco de o irmão gêmeo de um bipolar também ser,
por exemplo, é em média de 70%. Entre parentes de 1º grau, as
possibilidades de que haja reciprocidade do transtorno ficam em torno de
15%.
Até a combinação de pai e mãe instáveis, ainda que não exatamente
bipolares, pode se somar e gerar uma pessoa com o transtorno. O
psicólogo Lara explica que bipolares do tipo 1, o mais grave, que
apresenta todo o espectro de variação de humor, às vezes não têm parente
com a doença, mas a avaliação detalhada mostra que familiares próximos
são ciclotímicos no jargão médico, pessoas que alternam estados
apáticos e energéticos, timidez e expansividade, o chamado sujeito de
lua. A combinação de vários genes ciclotímicos pode formar um
bipolar, explica Lara.
A análise da árvore genealógica de bipolares famosos mostra a força
dessas relações genéticas. O pintor holandês Vincent van Gogh
(1853-1890) seria diagnosticado hoje como um caso grave de bipolaridade.
Quando estava feliz, passava temporadas pintando obsessivamente obras
de encher os olhos. Quando estava triste... bem, bastou se desentender
com o amigo e colega Paul Gaugin para cortar fora a orelha esquerda. Ele
tinha a quem puxar: seu pai sofria de uma doença psiquiátrica não
definida, assim como dois de seus tios paternos. Da mãe não se sabe, mas
a tia materna provavelmente era epilética. Dos 4 irmãos Van Gogh, 3
apresentaram distúrbios psi- quiátricos. Assim como o irmão pintor, Theo
era bipolar. Sua irmã Wilhelmina viveu por mais de 30 anos em
hospícios, e o irmão Cornelius cometeu suicídio.
O escritor Ernest Hemingway também teve sua árvore genealógica marcada
por perigosas oscilações de temperamento. Seu pai, dois irmãos e ele
mesmo, todos bipolares, se mataram. Soma-se à lista suicida a sua neta
Margaux, atriz e modelo. Dois de seus 3 filhos também tiveram problemas:
Patrick tinha psicose pós-traumática, e Gregory, que era bipolar e
transexual, morreu de doença cardiovascular na prisão em 2001 Gloria,
como passou a se chamar após a mudança de sexo, estava presa havia 6
dias por atentado violento ao pudor.
Análises de tomografias computadorizadas mostram que bipolares genéticos
têm redução na massa do córtex pré-frontal e aumento da amígdala. A
hipótese é que essas alterações são causadas pela aceleração de conexões
entre os neurônios. A velocidade neuronal seria também a responsável
pela enxurrada criativa geralmente relacionada à euforia. A má notícia é
que essa atividade toda no cérebro pode gerar mal-funcionamento das
áreas afetadas.
Mas qual seria a consequência disso para a vida do maníaco-depressivo?
Bem, o córtex pré-frontal é a parte responsável pela memória, a moral e
os sistemas de recompensa. Já a amígdala está relacionada com motivação,
medo e inibição. Coincidência? Claro que não, as peças se encaixam: é
justamente quando essas duas partes do cérebro não estão funcionando
direto que os bipolares embarcam nos comportamentos tipicamente
relacionados ao seu transtorno.
A caixa de cada um
Na origem latina, humor significa líquido, fluido. Curiosamente, os
psiquiatras gostam de compará-lo com uma caixa-dágua: o cano de entrada
é o que os médicos chamam de ativação; o cano de saída é a inibição; e a
boia, o controle. Em uma pessa equilibrada, o fluxo de água (de humor) é
normal.
Mas os bipolares têm a boia quebrada. Durante a mania extrema, entra
muita água na caixa, mas o cano de saída entope e a pressão extravasa o
líquido. Já na depressão pesada, é como se o cano de entrada estivesse
entupido e todo o líquido saísse, deixando a caixa vazia, ou a pessoa
sem motivação.
Mas não existe só caixa-dágua vazia ou caixa cheia. Dizer que
bipolaridade é só alternância de euforia e depressão é apresentar um
quadro maniqueísta do transtorno, garante a psiquiatra americana
Jamison. Existem muito mais tons de cinza do que se imagina. Apesar de
não alcançarem as nuvens nem o fundo do poço, a vida dessas pessoas é
marcada por irritabilidade e medo, e é preciso estar atento aos
sintomas.
Em meio a metáforas hidráulicas e cromáticas, fica a pergunta: o que tem
de mais em ser eufórico de vez em quando? Quem não gostaria de poder
canalizar uma energia feroz, inteligência rápida e talento abundante?
Ou, por outro lado, curtir uma fossa daquelas, lavar toda a roupa-suja
em casa ou na rua sem ficar remoendo os problemas?
Parafraseando Anna Karenina, dá para dizer que todas as crises
depressivas se parecem, mas cada crise eufórica é eufórica à sua
maneira. Jamison conta o caso de Jack Bauer, um jovem de 18 anos que
acreditava que sua vida estava sendo filmada 24 horas por dia. Há também
o Mente Brilhante, um senhor elegante e bigodudo de 45 anos que
acreditou ter descoberto a solução para a economia mundial e escrevia
páginas e páginas com esquemas. Até mesmo uma bipolaridade mais branda
pode queimar o filme. Um paciente hipomaníaco traiu a esposa durante uma
crise que durou dois dias e engravidou uma mulher que nunca tinha
visto, conta Lara.
O poeta Robert Lowell tinha uma frase sobre as duas faces do seu
distúrbio: A depressão é pessoal, e a euforia é social e, por isso,
menos tolerada. Como o bipolar quase sempre tem um comportamento normal
em público, suas crises maníacas parecem cafajestada e não doença. Mas
são. O bipolar sabe a diferença entre certo e errado, mas não consegue
se controlar, explica a presidente da Associação Brasileira de
Transtornos Afetivos, Helena Calil.
Vivendo num mundo bipolar, como saber o limite entre a doença e a
normalidade? Se o comportamento prejudica a vida da pessoa, deve-se
procurar ajuda, afirma Lara. Cada um sabe quando enche ou esvazia a sua
caixa-dágua.
10% da população mundial sofre de distúrbios de oscilação do humor.
3,5% das pessoas têm transtorno bipolar. Em 1980, era 1%.
70% é o risco de um gêmeo de bipolar ter o mesmo distúrbio.
15% é o risco de um parente em 1º grau de bipolar também sê-lo.
1994 - Nesse ano, entrou em vigor uma definição mais ampla de bipolaridade.
25% dos bipolares tentam suicídio ao menos uma vez na vida.
Causas
Três motivos explicam a presença - e o aumento - da bipolaridade
Diagnóstico
A ampliação dos fatores que indicam a pessoa portadora da doença no
DSM-IV também fez com que mais gente entrasse na classificação.
Ambiente
Crianças cheias de estímulos desde a infância e uma pressão social para
se destacar podem responder pelo aumento dos casos de transtorno
bipolar.
Genética
Não se sabe ainda qual o mecanismo, mas o fato é que a bipolaridade,
como outros problemas psiquiátricos, parecem passar de pais para filhos.
Consequências
O maníaco-depressivo vive oscilando entre polos
Tristeza Não tem fim...
O outro lado desse desequilíbrio é a depressão. Em casos mais extremos, a
pessoa não consegue nem sair da cama. Geralmente é a face menos
conhecida do problema, por acontecer no âmbito privado.
...Felicidade sem fim
No estado maníaco, a pessoa fica muito animada, tem ímpetos criativos e
afetivos, sem reconhecimento de limites normalmente respeitados. A
pessoa sabe o que é certo e errado, mas não consegue se controlar.
Muitas vezes o surto é turbinado com o consumo de álcool e outras
drogas.
Dois polos, 4 problemas
O DSM-IV, guia de doenças psiquiátricas dos EUA, divide os bipolares em 4 categorias
1. Apresenta toda a amplitude de variação do humor, do pico mais alto
(mania plena), que pode durar várias semanas, até depressões graves. Em
geral, inicia-se entre 15 e 30 anos, mas há casos de início mais tardio.
2. A fase eufórica é mais branda e curta, chamada de hipomania. Os
sintomas são semelhantes, mas não prejudicam a pessoa de modo tão
significativo. As depressões podem ser profundas e podem a parecer só
após os 40 anos
3. É uma classificação usada quando a fase maníaca é induzida por
antidepressivos ou estimulantes. Ou seja, a pessoa é bipolar, mas o
polo positivo só é descoberto pelo uso dessas drogas.
4. Nunca tiveram mania ou hipomania, mas têm um histórico de humor um
pouco mais vibrante, geralmente visto como algo bom. A fase depressiva
pode ocorrer só na faixa dos 50 anos, sendo bem oscilatória.
Charme da loucura
Ao longo da história, criatividade e bipolaridade sempre se cruzaram
Bipolaridade e genialidade são parceiras de longa data. Para os antigos
gregos, a loucura era nobre por ser divina, enquanto a sobriedade era
tediosamente humana. Entre os primeiros filósofos, o termo loucura não
indicava só psicose, mas uma ampla gama de estados alterados. Platão
colocou essas palavras na boca de Sócrates no diálogo Fedro: Loucura,
que vem proporcionar o dom do céu, é o canal através do qual recebemos
as maiores bênçãos.
Recentes pesquisas sugerem fortemente que, em comparação com a população
em geral, escritores e artistas mostram uma taxa de bipolaridade ou
depressão bem acima da média. Artistas apresentam 3 vezes mais casos de
psicose, tentativas de suicídio, transtornos de humor e abuso de álcool e
drogas. A proporção de internações psiquiátricas forçadas é 7 vezes
menor entre os não-artistas. As evidências levam as pessoas a considerar
que um pensamento destruidor, muitas vezes psicótico, e frequentemente
letal, como os da doença maníaco-depressiva, pode transmitir algumas
vantagens (como o aumento da potência imaginativa, intensificação das
respostas emocionais e aumento da energia). Isso é diminuir a noção de
individualidade artística e trivializar uma doença grave, opina
Jamison.
Para saber mais
Temperamento e Personalidade
Diogo Lara, Revolução de Idéias.
Touched With Fire: Manic Depressive Illness
Kay Jamison, Free Press.
www.psicosite.com.br/cla/DSMIV.htm
FONTE: http://super.abril.com.br/cultura/mais-ou-menos