De uma hora para outra, devido à pandemia, comércio, indústria, escolas e centros de lazer e atividade física fecharam e a mobilidade das pessoas ficou restrita. Quem pôde e dispôs dos recursos necessários isolou-se em casa, adotou o trabalho remoto e passou a ajudar os filhos com as aulas virtuais. Homens e mulheres começaram a usar máscara em locais públicos e o contato físico foi desestimulado – desapareceu o beijo no rosto e até o aperto de mão. Os que precisam ir às ruas convivem com receio de contrair o vírus e quem se infecta experimenta, além de sintomas físicos, o medo de desenvolver a forma grave da doença e precisar de internação.
Nos hospitais, os pacientes perdem o contato direto com a família – em certos casos, conseguem contato remoto – durante um tratamento prolongado no qual só interagem com a equipe de saúde.
Apesar da capacidade humana de se adaptar a transformações, as mudanças e o surgimento de tantas adversidades em pouco tempo podem gerar uma sobrecarga de estresse que já preocupa as autoridades internacionais de saúde e os profissionais de saúde mental. Em 13 de maio, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um relatório chamando a atenção de governos do mundo todo para que adotem medidas para reduzir o possível impacto da pandemia de Covid-19 sobre a saúde psíquica da população.
A OMS considera a saúde mental uma área negligenciada, que recebe dos países, em média, 2% do orçamento destinado à saúde, embora as doenças neurológicas e psiquiátricas afetem quase 1 bilhão de pessoas – segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), os transtornos mentais geram custos diretos e indiretos de US$ 2,5 trilhões (4% do PIB mundial). “Se não agirmos, haverá um grande percentual de pessoas seriamente afetadas, o que terá um impacto sobre a economia desses países”, afirmou a psicóloga Dévora Kestel, diretora do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS, à tevê alemã Deutsche Welle no dia seguinte ao lançamento do relatório.
O bem-estar emocional de crianças e adolescentes também parece ter sido abalado de modo importante pelo medo do contágio e pelo isolamento social. Com autorização dos pais, 1.784 crianças de duas escolas primárias responderam a perguntas que avaliavam sinais de depressão e ansiedade, além do nível de preocupação com o contágio e do otimismo mantido durante a pandemia.
Quase um em cada quatro estudantes relatou sinais compatíveis com o diagnóstico de depressão e um em cada cinco de ansiedade, proporção ao menos 30% superior à observada em estudos anteriores com crianças asiáticas de idade semelhante, segundo artigo publicado em abril na revista Jama Pediatrics.
Os sintomas de depressão foram mais intensos nas crianças de Wuhan do que nas que viviam em uma cidade próxima, Huangshi, que permaneceu menos tempo em quarentena. “Os achados sugerem que, assim como experiências traumáticas, doenças infecciosas graves podem influenciar a saúde mental de crianças”, escreveram os autores do trabalho, coordenado pela pesquisadora Ranran Song, da Universidade Huazhong de Ciência e Tecnologia.
No Brasil, o psiquiatra Guilherme Polanczyk e sua equipe no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) iniciaram em junho o monitoramento, também por meio da aplicação de questionários on-line, de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos de todo o país.
Os pesquisadores planejam avaliar alterações na rotina, no comportamento e nas emoções ao longo de um ano. Dados preliminares, obtidos a partir da análise de 4.504 respostas, indicam que a garotada tem passado muito tempo navegando na internet (metade usa eletrônicos por mais de oito horas por dia, descontando as aulas), dormindo menos e mais sedentária (43% não faziam atividade física havia duas semanas). Também sugerem que 13% dos participantes apresentavam algum nível de ansiedade e 16% de depressão que mereceria a avaliação de um especialista. “É uma proporção muito elevada, maior ainda nos filhos de pais estressados e com menor nível socioeconômico”, afirma Polanczyk.
Segundo o psicólogo Christian Kristensen, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “A partir de certo grau de sofrimento ou prejuízo no funcionamento e de sua duração, o problema se torna patológico e pode ser considerado transtorno psiquiátrico”, conta o pesquisador, integrante de um grupo da PUC-RS que realiza outro inquérito on-line para avaliar como a pandemia está afetando a saúde mental dos brasileiros. Além de menos intenso, o sofrimento psicológico persiste menos tempo (dura dias) e raramente necessita de tratamento com medicação, embora seja de duas a três vezes mais frequente na população do que os transtornos psiquiátricos.
Segundo a pesquisadora Carol North “O surgimento dos transtornos mentais depende da vulnerabilidade biológica do indivíduo e dos fatores ambientais. Diante de um fator ambiental com a magnitude dessa pandemia, até as pessoas menos vulneráveis podem desenvolver algum problema”, explica o psiquiatra Luis Rohde, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Para a maior parte das outras pessoas, esse deve ser um período de estresse e ansiedade, mas transitório”, pondera Polanczyk, da USP.
Enquanto não se enxerga o fim da pandemia, psiquiatras e psicólogos fazem algumas recomendações para amenizar o sofrimento psíquico: manter uma rotina parecida com a de antes, dormindo e acordando no mesmo horário; fazer exercício físico; não aumentar o consumo de bebidas alcoólicas; tentar desenvolver hobbies e realizar atividades de lazer; e não ficar ligado o tempo todo no noticiário.
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