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segunda-feira, 16 de julho de 2012

A síndrome de Diógenes



A síndrome de Diógenes (SD) caracteriza-se por descuido extremo com a higiene pessoal, negligência com o asseio da própria moradia, isolamento social, suspeição e comportamento paranoico, sendo frequente a ocorrência de colecionismo. A incidência anual é de 5/10.000 entre aqueles acima de 60 anos, e pelo menos a metade é portadora de demência ou algum outro transtorno psiquiátrico. As principais hipóteses etiológicas são: (1) a condição representaria o "estágio final" de um transtorno de personalidade; (2) a síndrome seria uma manifestação de demência do lobo frontal; (3) a SD seria o estágio final do subtipo hoarding do TOC; (4) a SD seria uma via final comum a diferentes transtornos psiquiátricos, especialmente aqueles associados ao colecionismo; (5) a síndrome seria precipitada por estressores biológicos, psicológicos e sociais, associados com a idade, em indivíduos com traços de personalidade predisponentes. É conhecido que existem apenas relatos de casos envolvendo tratamentos específicos para a SD, particularmente a risperidona. Por se tratar de condição grave, com elevada mortalidade por problemas clínicos, estudos se fazem necessários para determinar as melhores estratégias de abordagem desses pacientes. Os autores descrevem o caso de uma paciente com SD e fazem uma breve revisão da literatura.




INTRODUÇÃO
A síndrome de Diógenes (SD), descrita pela primeira vez em 1975, caracteriza-se por descuido extremo com a higiene pessoal, negligência com o asseio da própria moradia, isolamento social, suspeição e comportamento paranoico, sendo frequente a ocorrência de colecionismo (acúmulo de quantidade apreciável de objetos inúteis, sem um propósito aparente)1,2. A incidência anual é de 5/10.000 entre aqueles acima de 60 anos que residem sozinhos ou com familiares, e pelo menos a metade é portadora de demência ou algum outro transtorno psiquiátrico2. A síndrome acomete indivíduos pertencentes a todas as classes sociais e parece ser igualmente prevalente entre homens e mulheres3. Apesar de ser conhecida como uma doença da terceira idade, existem relatos de SD em adultos jovens4,5. Os autores descrevem o caso de uma paciente com SD e fazem uma breve revisão da literatura.

RELATO DE CASO
M., 60 anos, estudou até a sexta série fundamental e era aposentada como auxiliar de serviços gerais. Casou-se, grávida, aos 22 anos. Teve três filhos. Separou-se após 15 anos, em virtude do alcoolismo do marido. Sua infância e adolescência foram marcadas pelo alcoolismo e violência do pai. Residia com duas filhas e neto, em bairro de classe média.
No primeiro atendimento, estava desacompanhada. Demandava receita de fluoxetina (20 mg/dia), que usava há anos, prescrita por clínico-geral. Ao exame, notava-se apenas certo descuido pessoal e humor levemente deprimido. Após cinco meses, um filho nos procurou. Relatou que há dois anos M. vinha mudando seu comportamento. Cada vez mais, passava muitas horas trancada no quarto. Quando saía de casa, revirava os sacos de lixo no bairro e recolhia objetos. Fazia do quarto um "depósito de lixo". O banheiro privativo tornou-se inacessível pelo acúmulo de caixas e outros objetos. Descuidava-se da higiene. O banho era compulsivo. Passou a fazer uso de etílicos. O relacionamento com filhas e neto era muito ruim. Uma delas criou uma "casa paralela" dentro da principal.
No segundo atendimento, M. mostrou-se ansiosa e inadequada. Na sala de espera, mexia na lixeira. Confirmou que costumava recolher objetos do lixo alheio. Justificou-se dizendo que as pessoas do bairro jogavam fora coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia vinho algumas vezes apenas em casa. Ao exame, apresentava higiene satisfatória. Usava blusa de inverno em dia quente. Mantinha atitude desconfiada. Estava consciente, orientada globalmente e sem alterações sensoperceptivas. O pensamento apresentava-se organizado. Sem alterações de memória. O humor estava moderadamente deprimido. O juízo crítico era comprometido. O Mini-Mental foi 27/30 e o teste do relógio foi normal. A revisão laboratorial não mostrou alterações. Ressonância magnética do crânio evidenciou focos de alteração de sinal na substância branca nos hemisférios cerebrais, presumivelmente relacionados à microangiopatia, sem relevância clínica.

REVISÃO DA LITERATURA E DISCUSSÃO
A SD recebeu esse nome em homenagem a Diógenes de Sínope, filósofo grego representante do cinismo. O cinismo é uma corrente filosófica que prega o desapego aos bens materiais, por acreditar que a felicidade não depende de nada externo à própria pessoa. Diógenes – o filósofo que vivia como um cão – morava em um barril. Seus únicos bens eram uma túnica, um cajado e uma tigela, simbolizando desapego e autossuficiência perante o mundo. Esse epônimo tem sido criticado por duas razões: (1) diferentemente dos portadores da síndrome, Diógenes não acumulava objetos; (2) pacientes com SD tendem ao isolamento não por desejarem ser autossuficientes, mas por desconfiança e rejeição ao mundo externo2.
Os principais estudos sobre SD1,6,7 englobaram somente pacientes que foram levados a serviços de saúde2. Entretanto, muitos pacientes não chegam a serviços de saúde mental e optam por viver nas ruas mesmo quando poderiam viver em local adequado, seja por condição financeira satisfatória, seja por disporem de famílias que desejam recebê-los de volta, ou pela oferta de abrigos ou casas de saúde2,8. O estudo pioneiro, uma série de casos inglesa, foi realizado por Macmillan e Shaw em 19666. Os autores estudaram 72 indivíduos idosos que viviam em precárias condições de higiene. Desses, 53% (38/72) foram diagnosticados como psicóticos; 61% (23/38) eram portadores de psicose senil. De acordo com os autores, os pacientes com maior risco de apresentarem a síndrome são idosos independentes e dominadores, que moram sozinhos, com pouca ou nenhuma interação com a comunidade. Clark et al., em 1975, estudaram 30 pacientes ingleses internados por causa de doença aguda e autonegligência grave1. Os autores constataram que os pacientes apresentavam inteligência normal ou acima da média. Em 50% dos casos, nenhum transtorno psiquiátrico foi identificado. Uma série de casos irlandesa realizada na década de 1990 mostrou que 60% (17/29) dos pacientes com SD estudados apresentavam indícios de doença psiquiátrica7. As principais doenças encontradas foram demência (44%), abuso de etílicos, transtornos afetivos e parafrenia. Descrições mais recentes relatam a ocorrência de SD em associação com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtornos de personalidade (especialmente o transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva), esquizofrenia, demência, e até mesmo acidente vascular cerebral3,9. No caso presente, a única comorbidade psiquiátrica encontrada foi depressão maior. Ainda que a paciente tenha começado a ingerir bebidas alcoólicas recentemente, seu padrão de uso não configura abuso.
Com relação à etiologia da síndrome, existem algumas hipóteses relatadas na literatura2,9,10. Uma delas é que a condição representa o "estágio final" de um transtorno de personalidade11. Apesar de muitos portadores da síndrome serem considerados indivíduos "excêntricos" que gostam de viver isolados, é discutível se esses pacientes preenchem os critérios diagnósticos de transtorno de personalidade1,2,6. Além disso, nesse tipo de transtorno, a personalidade tende a estabilizar, ou até mesmo melhorar, com a idade12. Na SD, o que se vê é uma deterioração da personalidade12. Outra hipótese é que a síndrome seria uma manifestação de demência do lobo frontal12. De fato, alguns sintomas de patologia do lobo frontal estão presentes na SD, tais como irritabilidade, agressividade, ideias paranoides, desmotivação, falta de iniciativa e de insight. Porém, desconhece-se a existência de estudos neuropatológicos sobre a síndrome. Estudos neuropsicológicos de pacientes com SD também são raros na literatura. As possíveis causas são a dificuldade de se obterem o consentimento e a cooperação dos indivíduos, assim como a tendência de alguns pesquisadores de focarem seus trabalhos somente na psicopatologia. Adicionalmente, a condição é mais comum em pacientes acima de 70 anos, enquanto a demência do lobo frontal geralmente se inicia entre 55-65 anos de idade12. No caso apresentado, a paciente tinha idade de 60 anos, inferior à idade média usual relatada na literatura. Entretanto, não havia sintomatologia de demência frontal. Uma terceira hipótese é que a síndrome seria o estágio final do subtipo hoarding do TOC13. Entretanto, alguns autores argumentam que a SD é uma via final comum a diferentes transtornos psiquiátricos, incluindo o TOC, a síndrome de Tourette e outros transtornos associados ao colecionismo9. A hipótese etiopatológica mais convincente foi proposta por Clark et al.1. Segundo esses autores, a SD seria precipitada por estressores biológicos, psicológicos e sociais, associados com a idade, em indivíduos com traços de personalidade predisponentes (isolamento, desconfiança, agressividade, astúcia, labilidade emocional e tendência a distorcer a realidade).
Diante de um paciente com hipótese de SD, vários diagnósticos diferenciais devem ser considerados. O colecionismo pode estar presente em outras condições, tais como TOC, transtorno de personalidade obsessivo-compulsiva, esquizofrenia, demência, anorexia nervosa, autismo, síndrome de Prader-Willi e lesão do córtex orbitofrontal esquerdo ou bilateral9. A autonegligência também é frequente em outros transtornos como esquizofrenia e demência. O clínico, diante de um paciente com suspeita de SD, deve considerar se a presença de autonegligência e/ou colecionismo não faz parte de nenhuma comorbidade supracitada. No caso de o paciente apresentar SD e colecionismo, na ausência de outros transtornos responsáveis por este último, há autores que defendem o diagnóstico de colecionismo primário como condição psiquiátrica comórbida a SD9.
O tratamento dos indivíduos acometidos pela SD é dificultado por vários fatores. O principal deles é a relutância dos pacientes em aceitar qualquer tipo de ajuda. Os casos geralmente chegam ao conhecimento dos serviços de saúde após denúncias de vizinhos, preocupados com as consequências do acúmulo de lixo nas proximidades de suas residências. Alguns pacientes também são levados a pronto-atendimentos após episódios de perda de consciência. A mortalidade por problemas clínicos é elevada2.
Nos anos 1960, Macmillan e Shaw6 observaram a evolução de pacientes com SD em vários settings: internação em hospital psiquiátrico, internação em hospital geral, hospital-dia e cuidados na comunidade6. Em regime de internação, houve deterioração significativa dos pacientes. No regime de hospital-dia, os problemas mais relevantes foram a falta de adesão dos pacientes ao tratamento (apesar de o serviço dispor de uma ambulância para buscá-los em casa, muitos se recusavam a ir) e a intolerância dos funcionários e demais pacientes com a falta de higiene dos indivíduos com a síndrome. Os cuidados na comunidade, por sua vez, incluíram visitas domiciliares (feitas por profissionais de saúde mental) e ajuda na realização das tarefas domésticas. Na década seguinte, Clark et al.1 reforçaram os cuidados na comunidade como sendo a melhor estratégia de tratamento e condenaram a internação compulsória dos indiví­duos com SD em asilos ou hospitais1. Os autores salientaram que, na ausência de doença mental, o indivíduo tem o direito de optar por sofrer ou morrer sozinho, sem que haja negligência criminal envolvida. Cooney e Hamid, 20 anos depois, também recomendaram a abordagem domiciliar dos pacientes (apesar de reconhecerem a baixa eficácia da medida) e indicaram o tratamento compulsório como última opção por causa das implicações médico-legais2. Mais recentemente, Greve et al.14 relataram o acompanhamento de uma paciente com SD durante cinco anos14. Apesar das tentativas de intervenção (farmacológicas e comportamentais), a paciente continuou a acumular lixo e a viver em precária higiene. Apresentou declínio cognitivo mínimo ao longo dos cinco anos.
É conhecido que existem apenas relatos de casos envolvendo tratamentos específicos para a SD, particularmente a risperidona15,16. Diante de um paciente com suspeita dessa síndrome, recomenda-se avaliação psiquiátrica, incluindo avaliação cognitiva e clínica, exames complementares de rotina, avaliação neurológica e exame de imagem do crânio. As comorbidades psiquiátricas, caso sejam encontradas, devem ser tratadas.

CONCLUSÃO
A SD é uma condição grave que requer uma abordagem multiprofissional. Os poucos trabalhos existentes não incluíram indivíduos mais jovens nem moradores de rua com quadros de autonegligência severos. Estudos são necessários para determinar as melhores estratégias de abordagem desses pacientes.

AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Dr. Jorge Paprocki pela leitura crítica da versão preliminar deste trabalho e valiosas sugestões para aprimorá-lo. E, pela participação na discussão do caso, agradecem ao Dr. Ulisses G. V. Cunha.

REFERÊNCIAS
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2 comentários:

  1. GOSTARIA DE DEIXAR AQUI MEU RELATO. ACHO QUE AINDA ESTÃO PERDIDOS EM DESCONHECIMENTO. E É NECESSÁRIO SE FAZER UMA BOA PESQUISA, INCLUSIVE, SOBRE OS GRAUS DA SÍNDROME. CHEGUEI A CONCLUSÃO SOZINHA, DE SER PORTADORA DE SD, MAS NÃO TENHO PROBLEMA DE HIGIENE PESSOAL E NEM ME VEJO COMO DOENTE MENTAL. VEJO COMO UMA MANEIRA DE EXTRAVASAR QUANDO TUDO DÁ ERRADO. REALMENTE A CASA FICA UMA BAGUNÇA. E NÃO ENTENDO PORQUE QUEREMOS APROVEITAR O LIXO, O ACHANDO ÚTIL. ESPERO QUE ENCONTREM UM CAMINHO PARA TRATAMENTO. QUE ACREDITO SER PSICOLÓGICO E NÃO PSIQUIÁTRICO.

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  2. AGORA QUE VI, MARCELO, QUE FOI VC QUE POSTOU. VI QUE É ENFERMEIRO E GOSTARIA DE SABER, PQ O INTERESSE NO ASSUNTO. FIZ COMUNICAÇÃO, MAS SE SOUBESSE QUE IA DESENVOLVER ESSA SÍNDROME, TERIA FEITO PSICOLOGIA E TENTARIA DE ALGUMA MANEIRA AJUDAR OS PORTADORES. QUASE NINGUÉM ENTENDE E A PRÓPRIA PESSOA DEMORA PRA VER QUE É UM PROBLEMA. SE QUISER TROCAR IDEIA SB O ASSUNTO, ME ESCREVE.

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